É desalentador que uma Câmara em parte renovada em 2018 com parlamentares eleitos com o discurso anticorrupção tenha sido responsável pelo fim da ação de improbidade resultante de um projeto aprovado durante o controvertido governo Collor. Sergio Moro via Crusoé:
Em
junho do distante ano de 1992 foi publicada a lei 8.429, de improbidade
administrativa. Aquele foi um ano turbulento. No mesmo mês de maio,
Pedro Collor, irmão de Fernando Collor, concedeu entrevista à revista
Veja na qual declarou que Paulo Cesar Farias seria um testa-de-ferro do
então presidente. Depois da entrevista, os fatos se sucederam
rapidamente, com novas revelações, a instalação de uma Comissão
Parlamentar de Inquérito e a admissão do impeachment presidencial em 29
de setembro, seguida da condenação do presidente pelo Senado Federal em
dezembro daquele ano.
É
até surpreendente que o Congresso tenha sido capaz, nesse cenário
conturbado, de aprovar a lei de improbidade administrativa, resultante,
aliás, do encaminhamento de um projeto de lei do Executivo em agosto do
ano anterior. Talvez o próprio escândalo de corrupção tenha impulsionado
a tramitação e a aprovação da nova lei como forma de satisfazer a
opinião pública.
Desde
então, a lei de improbidade passou a ser manejada constantemente pelo
Ministério Público, com a instauração de inquéritos civis para apurar
improbidade administrativa e a proposição das ações decorrentes. Muitos
promotores viram na lei a possibilidade de utilizar um instrumento de
natureza cível para apurar e punir crimes contra a administração pública
sob o rótulo de ato de improbidade. A estratégia consistia em evitar a
morosidade do processo penal e os generosos prazos de prescrição
previstos para as penas criminais, mas ausentes para as sanções
decorrentes da lei de improbidade. Diferentemente do que prevê a penal, a
lei de improbidade não permite a aplicação da pena de prisão. Mas as
demais consequências são rigorosas, com a previsão de indenização
completa ao erário, a devolução do patrimônio ilicitamente auferido,
além de multas e penas como a perda de função pública ou de suspensão
dos direitos políticos.
Sob
o argumento de que estariam havendo excessos no emprego da lei de
improbidade contra prefeitos do interior, tramita no Congresso Nacional o
projeto de lei 10.887/2018 com o objetivo de alterá-la e coibir os
afirmados abusos. O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados e agora
está submetido ao Senado. A lei de improbidade constituiu um avanço. É
muito natural que agentes políticos reclamem de alguns erros ou de
excessos. Mas também é um equívoco tomar o todo pela parte. Pontuais
injustiças no emprego da lei de improbidade não justificam o seu
extermínio, o que será o resultado da aprovação do projeto de lei com a
redação trazida da Câmara.
A
imprensa, em geral, não tem dado muita atenção ao tema. Quando
publicadas críticas, o foco tem sido na parte material da lei,
especialmente na supressão de algumas hipóteses de improbidade e na
redação limitadora do texto. O foco da imprensa na parte material da lei
é natural, pois é de mais fácil compreensão. Entretanto, a maior
preocupação que o projeto suscita diz respeito à parte do processo.
Parafraseando parte da famosa frase da campanha eleitoral do
ex-presidente Bill Clinton, “é o processo, estúpido” o verdadeiro ponto
relevante. Podemos fazer um paralelo com o que acontece para o crime de
corrupção. Temos uma lei relativamente adequada que define corrupção
como crime, mas quase ninguém é condenado salvo em raros casos ou em
períodos extraordinários como durante a Operação Lava Jato. É o processo
de aplicação da lei que não tem funcionado e, quando se avançou,
recentemente, para fazê-lo efetivo, com a admissão, por exemplo, da
condenação em segunda instância, logo entraram em ação os interessados
na contrarreforma.
O
projeto de lei traz para a ação de improbidade alguns dos piores vícios
que acometem de inefetividade o processo criminal brasileiro. Uma delas
a prescrição intercorrente. Vamos explicar. É razoável que a lei
estabeleça, para segurança jurídica, um prazo razoável entre um fato e a
propositura da ação com base nesse fato pelo autor. Decorrido o prazo,
mesmo que o fato tenha ocorrido, perde-se a possibilidade de reclamar o
direito ou de impor uma sanção perante a Justiça. O instituto é
normalmente denominado prescrição, às vezes de decadência, em virtude de
nuances que só os juristas entendem. Até mesmo no direito anglo saxão,
mais efetivo, se tem prazos, com os chamados estatutos da limitação,
embora certos crimes, como aqueles contra a vida, não sejam em geral
submetidos a qualquer prazo para serem punidos. Prever um prazo para
começar uma ação e assim punir a inércia e fomentar a segurança jurídica
é uma coisa. Prever que o prazo corre mesmo após a propositura da ação,
é uma criação heterodoxa que destruiu o processo penal brasileiro. Por
exemplo, o Ministério Público tem três anos a partir do fato para propor
ação penal por crimes menores, mas, após proposta a ação penal, se
passarem mais de três anos até a sentença ou desta para o julgamento de
eventual apelação, o crime prescreve, gerando impunidade. Na prática,
isso gera um estímulo para os demandados e seus defensores pleitearem
medidas protelatórias, já que podem ganhar o caso apenas com o decurso
de prazo, sem a necessidade de discutir o mérito.
Na
ação de improbidade, considerada de natureza cível e não penal, não
havia nada disso, mas o projeto muda esse quadro, instituindo a
prescrição intercorrente também para ela. Prevê um prazo à primeira
vista generoso de prescrição de oito anos entre o fato e a propositura
da ação. Mas o prazo cai para quatro anos na prescrição intercorrente,
por exemplo, entre a propositura da ação e a sentença. Quatro anos podem
parecer tempo razoável, mas quem conhece a realidade dos nossos
tribunais recursais e superiores, em que o julgamento de casos complexos
demora anos, sabe que são insuficientes, especialmente quando o réu tem
incentivos para protelar. Recordo-me, para ilustrar, que as condenações
que foram exaradas contra os gestores do Banestado no escândalo das
contas CC5 foram prejudicadas, em sua maioria pela prescrição, pelo
decurso de prazo excessivo para julgamento dos recursos. Também já vi
casos de homicídio prescreverem pelo decurso de até doze anos na espera
de julgamento de recurso em Tribunal Superior.
Além
da prescrição intercorrente, o projeto estabelece o prazo de seis meses
para a conclusão da investigação sobre ato de improbidade, prorrogáveis
por mais seis meses. Um ano para investigações pode parecer muito, mas
infelizmente não é. Casos complexos – e são esses que normalmente
envolvem os fatos mais graves – podem levar muito mais tempo.
Ouvi
de defensores do projeto que os prazos exíguos levariam o Ministério
Público a acelerar as investigações e o Judiciário a imprimir celeridade
na tramitação dessas ações e os julgamentos. Não é isso que irá
ocorrer, como é previsível. Ao gerar incentivos para a adoção de medidas
protelatórias pelos réus, o oposto ocorrerá. Foi o que aconteceu no
processo penal e é o que irá acontecer com a ação de improbidade.
Não
entro nos demais detalhes do projeto e que são também ruins, pois o
espaço é escasso. Quando o projeto foi aprovado na Câmara, alguns
agentes políticos comemoraram publicamente. Seria o fim da
judicialização da política e dos excessos com a ação de improbidade. Na
verdade, a comemoração era pelo próprio fim da ação de improbidade. É
desalentador que uma Câmara em parte renovada em 2018 com parlamentares
eleitos com o discurso anticorrupção tenha sido responsável pelo fim da
ação de improbidade resultante de um projeto aprovado durante o
controvertido governo Collor. Vamos esperar que o Senado melhore o
projeto, o que significa rejeitar a maioria das alterações da Câmara. Há
razões, porém, para ceticismo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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