Importante lição: o “isentão”, longe de ser um covarde, assume a posição corajosa de ser senhor da sua liberdade interior, sem procurar os confortos de um partido, de uma fação, de uma causa. João Pereira Coutinho via FSP:
Devo aos amigos brasileiros uma das minhas descobertas linguísticas: “isentão”. Assim falam eles de quem não toma partido ou posição política, sobretudo quando o mundo conspira para que sejamos maniqueístas e simplórios.
Talvez
sem saberem, essas almas laicas repetem a injunção bíblica contra os
mornos, vomitando-os com a mesma fúria divina. Se pudessem, lançariam
todos os neutros para o inferno, tal como Dante o fez na sua “Divina Comédia”.
Defendo-me
como posso: a isenção, a recusa em participar na lama, a náusea perante
“o estado a que isso chegou”, também é uma escolha. Uma nobre escolha.
Não se convencem e, pior, imagino que nas próximas eleições brasileiras,
se não surgir uma terceira via decente entre Lula e Bolsonaro, o ódio ao isentão só vai crescer.
Para eles, só posso aconselhar a maravilhosa biografia que Stefan Zweig
escreveu sobre um conhecido sábio humanista. Intitula-se “Triunfo e
Tragédia de Erasmo de Roterdão” (Assírio e Alvim, tradução de Maria Elsa
Neves e Maria José Diniz). O destino dos isentões é mesmo um triunfo e
uma tragédia.
Comprei
o livro depois de ler um texto inspirado da Economist que recomendava
Erasmo para os nossos tempos de polarização ideológica. Uma bela
recomendação.
E
ninguém melhor do que Stefan Zweig para captar essa urgência: o livro
sobre Erasmo foi escrito em 1934, quando os totalitarismos devoravam a
Europa, e é evidente que Zweig, olhando para Erasmo, estava sobretudo a
olhar-se no espelho. Ali estava um intelectual humanista e cosmopolita
que a história arrastara para a perdição dos fanatismos.
Mas, antes da perdição, o que interessa a Zweig é apresentar Erasmo como o produto de um tempo em que os homens, libertos da submissão religiosa e feudal da Idade Média, cultivam pela primeira vez a experiência da individualidade.
Entre
esses homens está Erasmo, um sacerdote da igreja que, no entanto,
apenas deseja responder perante si próprio. “Nulli concedo”, eis a
divisa latina de Erasmo, que pode ser traduzida livremente como “não me
rendo a nada”.
Importante
lição: o “isentão”, longe de ser um covarde, assume a posição corajosa
de ser senhor da sua liberdade interior, sem procurar os confortos de um
partido, de uma fação, de uma causa.
Claro
que essa liberdade interior não o exclui do debate público. O seu
“Elogio da Loucura” é uma das mais refinadas sátiras contra a hipocrisia
temporal e religiosa do seu tempo —e Stefan Zweig afirma, com razão,
que a sensibilidade da reforma protestante nasceu com um panfleto de um
sacerdote católico.
Mas
o temperamento de Erasmo é reformista, tolerante, aberto à discussão
racional; nada o preparava para o “furor teutonicus” de Lutero e seus
seguidores, dominados pela certeza dogmática, e até blasfema, de que
tinham Deus do seu lado. Eis o dilema que estilhaça Erasmo: de um lado,
Roma apela à sua lealdade contra o diabólico de Wittenberg —“Em frente,
em frente pela causa divina! Utiliza os teus maravilhosos dons para
honrar Deus!”). Do outro, Lutero espera que Erasmo se junte à luta
contra a decadência material e moral do papado.
Perante
dois fanatismos gêmeos, Erasmo quer ser “integrum”, ou seja,
distanciar-se da cegueira de Roma e da violência de Lutero, depois de
tentar uma reconciliação frustrada. “Sou um gibelino para os guelfos e
um guelfo para os gibelinos”, dirá, em referência culta às lutas que
dilaceraram Florença.
Mas
o tempo não está para erudições. Como escreve Stefan Zweig em passagem
que poderia ter sido produzida hoje, “ninguém quer compreender o seu
vizinho; cada um quer impor ao outro, pela violência, as ideias do seu
partido, a sua doutrina; e infelizes daqueles que queriam manter-se à
parte ou permanecer fiéis às suas próprias opiniões: os que desejariam
manter-se entre os partidos ou acima deles são objeto de um duplo ódio!”
Duplo,
de fato: Erasmo é escorraçado de Lovaina pelos católicos e é
escorraçado de Basileia pelos protestantes. Acaba só, mas de alma
intacta, contemplando sem surpresa uma Europa de sangue e ruína. O
triunfo e a tragédia do isentão está aqui: ele sabe que o fanatismo
acabará por destruir-se a si próprio; mas também sabe que a recusa em
participar nessa orgia será o princípio do seu calvário pessoal.
BLOG ORLANDO TAMBOSI


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