Nada como uma bela derrota para trazer à tona as inevitáveis contradições internas entre a criadora e sua agora aturdida criatura. Vilma Gryzinski:
“Não
sou eu que põe em cheque o presidente, é o resultado eleitoral”. Com
seu habitual estilo deixa que eu chuto, Cristina Kirchner enfiou o salto
agulha no coração metafórico Alberto Fernández , de quem exige que
renove os votos de vassalagem e faça tudo o que ela quer – mais auxílio
emergencial, menos ajuste fiscal e aumento de aposentadorias, mesmo que
isso arrombe as contas já estropiadas. Também exige as cabeças dos
ministros que acha responsáveis pela estrondosa derrota da Frente de
Todos, a coalizão peronista, na eleição primária de domingo.
Como
o presidente ungido e eleito por ela vacilou, Cristina fez uma manobra
dramática, bem a seu estilo: mandou “seus” cinco ministros saírem do
governo. Também pediram demissão quatro ocupantes de altos postos que
respondem diretamente à ex-presidente.
Diante
de uma chefa cuspindo fogo e queimando os navios, Alberto Fernández
pretendeu exibir firmeza na tormenta, equilibrando-se perigosamente em
cima de muro do qual só pode descer dinamitando a autoridade que lhe
resta.
“A
gestão continuará como eu considerar conivente, para isso fui eleito”,
tuitou. “Continuarei garantindo a unidade da Frente de Todos com base no
respeito que nos devemos”.
Se
pudesse fazer isso, até que não estaria tão aturdido. O problema é que
Alberto Fernández está numa posição impossível: enfraquecido pela
derrota eleitoral dos peronistas, o que projeta um resultado ruim para a
eleição parlamentar de 14 de novembro, e desmoralizado diante da sua
santa – ou seu oposto – padroeira.
Cristina
Kirchner escolheu Fernández para chefiar a chapa presidencial, contando
que tinha uma imagem menos desagregadora do que ela própria. Deu certo,
com uma boa ajuda do fracassado governo de Mauricio Macri.
Nem
era preciso conhecer detalhes das violentas lutas internas do peronismo
para ver que em algum momento criadora e criatura entrariam em choque.
O
momento chegou e não está sendo nada bonito. A ruptura só não é
definitiva porque as duas alas, cristinista e albertista, necessitam-se
mutuamente. No caso de Cristina, a necessidade é existencial: só o
mandato como vice-presidente impede que seja presa em razão dos vários
processos por corrupção que enfrenta. Reformar o Judiciário como quer,
dobrando-o às suas exigências, é a prioridade que ela pode ver se
dissolver.
Alberto
Fernández não está numa posição muito melhor. Sem o apoio do
kirchnerismo, fica solto no espaço, agarrado a um governo desastroso em
todos os sentidos, com pandemia, inflação, moeda em putrefação,
isolamento internacional e aumento espantoso da pobreza – para ficar só
nos problemas mais urgentes.
Se
ceder a Cristina, estará completamente desmoralizado e o rumo mais
esquerdista que ela exige implodirá o que resta de esperança de gestão
menos desastrosa da economia. Se não ceder, naufraga num turbilhão.
As
contradições internas do peronismo têm uma tumultuada trajetória
histórica. Por ser um movimento altamente heterogêneo, muitas vezes
abrigou correntes de esquerda, de direita e de centro. O maior choque
entre as diferentes alas aconteceu quando Juan Domingo Perón voltou do
exílio, depois de 18 anos, em 1973.
Em
lugar da celebração eufórica, como se condensasse uma três copas do
mundo num único evento, as alas conflitantes prepararam-se para o
extermínio mútuo. Armas levadas em ambulâncias abasteceram militantes da
Juventude Peronista e dos Montoneros. Sindicalistas e figuras de
direita ligadas ao entorno mais próximo de Perón ocuparam o palanque
armado num cruzamento da estrada para o aeroporto de Ezeiza.
O
confronto terminou com treze mortos, mais de 300 feridos e um ódio
mútuo que se prolongou durante o curto e sombrio período em que Perón
voltou à presidência e continuou depois que sua viúva, Isabelita,
assumiu, como vice, o lugar deixado pela morte do marido. Foi um dos
principais fatores para o tão anunciado golpe militar de 1976. A
esquerda armada acreditava que o golpe acabaria provocando sua sonhada
revolução – um dos muitos delírios desse gênero.
Estes
episódios terríveis ajudam a compreender como a atual crise interna do
peronismo é apenas um soluço episódico e, teoricamente, pode ser
superada.
Falando ao Página 12, o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, do alto de seus 86 anos, deu até receita para a superação:
“A
Argentina é um país maravilhoso pelos recursos que tem, mas está
descompensada. O sistema político tem que dialogar muito mais, não há
democracia sem diálogo, e o diálogo significa baixar os decibéis, não
ficar se xingando pela imprensa e conversar mais”.
Mujica apelou até a Martín Fierro, a obra fundadora da argentinidade profunda, para pedir o fim do massacre interno.
“Recomendo
ler o Martín Fierro, os irmãos se unam porque se não são devorados
pelos de fora. O que a Argentina mais precisa é de unidade, unidade com
diversidade, mas unidade. Não é o momento para brigas internas”.
As
chances de que seus conselhos sejam ouvidos são próximas de zero. O
impulso em direção da autodestruição é uma das características gravadas
no DNA político argentino.
“Os peronistas não são nem bons nem maus, são incorrigíveis”, provocava Jorge Luis Borges.
Cristina
Kirchner e Alberto Fernández estão tendo a oportunidade de contestar a
frase lapidar do mestre e seus próprios impulsos, mas é difícil que a
aproveitem.
“Como
não sou mentirosa e muito menos hipócrita (nunca digo em público o que
sustento em privado e vice-versa), devo mencionar que durante o ano de
2021, tive 19 reuniões de trabalho em Olivo com o presidente da nação”,
fuzilou Cristina na carta aberta a Fernández. “Nós nos vemos ali e não
na Casa Rosada por sugestão minha e com a intenção de evitar qualquer
tipo de especulação e operação mediática de desgaste institucional”.
“Cansei
de dizer” que o presidente estava apoiando “uma política fiscal
equivocada que estava impactando negativamente a atividade econômica”.
“Quando
tomei a decisão de propor Alberto Fernández como candidato a presidente
de todos os argentinos e argentinas, o fiz com a convicção de que era o
melhor para minha pátria”.
“Só peço ao presidente que honre aquela decisão”.
Tradução: ela manda e “Alberto” tem que obedecer. Caso contrário, ferrou.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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