Está na hora de superar um processo editorial criado no século 15. Dagomir Marquezi para a nova edição da Oeste:
No
início de 2013, decidi lançar um livro. Preparei os originais e os
enviei por e-mail para uma dezena de editoras. Já antecipava a enorme
fila de leitores dobrando os corredores do shopping para disputar meu
autógrafo. Na realidade, uma única editora me respondeu, informando que
meu livro seria avaliado até o fim do ano. E, caso fosse aprovado, teria
uma pequena chance de ser publicado no segundo semestre do ano
seguinte.
A
fila dos autógrafos se dispersou imediatamente na minha imaginação.
Decidi que não passaria mais por essa indignidade. Pretendia publicar
livros na hora que quisesse, como quisesse, cobrando o preço que
decidisse, ganhando pelas vendas de maneira clara, justa e honesta.
Decidi
então compreender o processo de autopublicação digital da Amazon,
conhecido mundialmente como o formato Kindle. Era simples e gratuito. Eu
seria o editor de mim mesmo. Improvisei uma capa. Segui as instruções
técnicas na formatação do texto. Quando decidi que o livro estava
pronto, apertei o “Enter” e o remeti à Amazon. Algumas horas depois, ele
estava à venda no mercado nacional e internacional. Não haveria filas
imaginárias para os autógrafos. Mas meu livro era uma realidade. Eu
escrevi. Eu publiquei. Eu respondo por ele. Ninguém decidiu por mim.
Se
publicasse meu livro numa editora convencional, provavelmente ganharia
10% do preço de cada exemplar vendido. Na Amazon/Kindle, ganho 70%. Numa
editora “normal”, eu teria de esperar por relatórios anuais de vendas
(nem sempre honestos) para saber quantos exemplares haviam sido
vendidos. E então esperaria pelo cheque que eles me mandariam. Ou não.
Na Amazon, tenho um painel de vendas que se atualiza a cada segundo.
Minha parte nas vendas é somada a cada fim de mês e religiosamente
depositada num banco designado por mim.
Anos
depois, escrevi um guia de série (The Man From UNCLE). Passei o texto
para o inglês usando o tradutor Google e o revisei com a ajuda de um
amigo diplomata. Logo estava recebendo pagamentos de leitores dos EUA,
Reino Unido, Austrália, Canadá, Japão, Alemanha, França, Itália,
Espanha, Índia, Holanda e México. Os pagamentos são convertidos em reais
através de uma startup internacional e caem todo mês na conta do meu
banco brasileiro.
A
Amazon ainda oferece a opção Kindle Unlimited. É uma espécie de
streaming do livro. O leitor que assina esse serviço paga um preço fixo
mensal (menos de R$ 20) e pode emprestar um livro ou ler as páginas que
quiser. Eu recebo por cada página lida.
O cheirinho do papel
O
mercado global de livros digitais abre perspectivas que eram
impensáveis. É o caso da inglesa Erika Mitchell. Com o pseudônimo E L
James, ela escreveu um romance erótico que foi desprezado por cada
editora a quem ela ofereceu os originais. Erika não desistiu. Lançou seu
livro em formato digital no regime de autopublicação da Amazon com o
título 50 Tons de Cinza. As vendas explodiram e uma grande editora
comprou seus direitos por muito mais dinheiro do que Erika Mitchell
poderia sonhar. O livro descompromissado que ela mesma produziu em casa
virou uma trilogia, uma série de filmes e gerou uma média de US$ 10
milhões por ano à autora.
Entre
os “donos” da cultura, os mesmos mantras são repetidos — “Só leio
livros impressos”. “Gosto do contato físico”. “Adoro o cheirinho do
papel.” Ora, quando leio um livro, quero palavras formando sentido e
fazendo cócegas no meu cérebro. Não preciso de cheirinho nenhum.
Tecnologia do século 15
Os
filmes e séries foram digitalizados em alta definição de som e imagem, e
ninguém mais parece ter saudade dos videocassetes. A música se
digitalizou de vez nos serviços de streaming e só uma ínfima minoria
ainda sente falta do “cheirinho de vinil”. A própria imprensa resistiu
quanto pôde, mas percebeu que a história caminha para a frente — e
jornais de papel hoje chegam a ser vendidos nas bancas como banheiros de
pets.
Então,
por que os livros não podem seguir o mesmo caminho? Por que devem
continuar dependendo de cortes de árvores, de processos industriais
poluentes, de transportes caríssimos, dos filtros estéticos e
ideológicos de quem os avalia? Por que só autores aceitos por esse
establishment podem ter uma chance? Aparentemente, o que se escreve na
bolha deve permanecer na bolha.
Rompi
definitivamente com o papel. Enquanto os elitistas pagam R$ 50, R$ 100
ou até R$ 1.000 por um livro impresso, eu compro toda a obra de um Jules
Verne ou um Machado de Assis por R$ 3. Ajusto o tamanho das letras, se
for preciso. Consulto o significado de uma palavra tocando nela. Destaco
as partes mais importantes com a ponta do meu dedo. Digito anotações no
texto, que servem como um índice personalizado. Eu estou aproveitando o
que o meu tempo tem a oferecer de melhor. Livros de papel evoluíram
quase nada desde que foram inventados por Johannes Gutenberg, em 1455.
Falei
da Amazon porque é o sistema que eu uso. Mas existem muitas outras
plataformas para que qualquer pessoa possa comprar ou publicar seu livro
digital — Clube de Autores, Google Play, Apple Books, Kobo, Scribd,
Wattpad, Simplíssimo, Nextmidia, etc. E quase todas essas plataformas
oferecem também opções de impressão de papel para quem quiser. A arte do
livro de papel deve ser preservada, mas num nicho, e não estagnar no
domínio quase completo do mercado.
7,9 bilhões de biografias
O
brasileiro tem a fama — justificada — de ler pouco. Nosso mercado de
livros é irrisório. Aprendemos a misturar o ato de ler com imagens de
sonhos: numa rede durante as férias, ou à beira de uma piscina, ou
durante noites de insônia, longas viagens de avião, em cruzeiros
marítimos. Mas a vida não é assim. Para a maioria das pessoas, a vida é
uma correria sem fim.
Desde
que optei pelos digitais, nunca li tanto na minha vida. Hoje posso
abrir um livro em uma série de situações novas. E não tenho a
preocupação de sair de casa com um volume (de papel) na minha mochila.
Eu levo centenas de livros no meu celular. Ler ficou mais fácil, mais
ágil, mais urgente, mais adaptável a uma vida cada vez mais dispersa e
fracionada.
Um
dos pontos de resistência do livro impresso é o prazer ligado às lojas
físicas. Quem gosta de circular por elas deve continuar tendo essa
possibilidade, consultando-se com os vendedores, tomando um espresso
dentro da loja, etc. É um ritual que exerci milhares de vezes na vida.
Até ganhar a consciência de que aqueles livros empilhados são aqueles
que as editoras permitiram que chegassem até mim.
Troquei
pela zona de desconforto do universo infinito das redes de livros
digitais, em que o leitor pode conhecer pontos de vista que nem
imaginava existirem, ou encontrar obras sobre assuntos extremamente
específicos. A ideia que acompanha a era dos e-books é: qualquer um pode
ler qualquer livro, como e quando quiser. Mas existe um conceito que
serve de espelho a este, e que o enriquece ainda mais: qualquer um pode
escrever qualquer livro como e quando quiser. No mínimo, cada ser humano
tem a história de sua própria vida para contar. Cada um dos atuais 7,9
bilhões de habitantes da Terra vai experimentar uma vida única, e tem o
potencial para criar uma rica autobiografia.
Hoje,
está ao alcance de qualquer um colocar à venda um livro com as receitas
deixadas por sua avó. Ou descrever as viagens que fez durante a vida.
Ou falar com paixão de seus hobbies. Ou transcrever uma longa entrevista
com as memórias de seus pais. Ou relatar as mudanças sofridas pelo seu
bairro. Ou pesquisar sobre um fato histórico que os especialistas em
ciências humanas desprezam. Ou escrever aquele romance ou aquelas
poesias que editor nenhum aceitaria. Ou listar seus 100 discos
favoritos, com comentários. Ou explicar suas ideias para um mundo
melhor.
O
mercado brasileiro de e-books cresceu 16% em 2020 com relação a 2019.
Nesse mesmo período, foram comprados 83% a mais de livros digitais. A
fatia do mercado de livros eletrônicos (incluindo audiobook) cresceu de
4% para 6%, embalado pela pandemia. Ainda é pouco, muito pouco. No
mercado americano, 21% dos livros comprados são digitais. Mas estamos
evoluindo, apesar da forte torcida contrária.
Livros
digitais libertam. Pense nos volumes de papel que apodreceram
embolorados em algum porão e se perderam para sempre. Pense em edições
inteiras sendo transformadas numa pasta por enchentes. Pense nas obras
queimadas em público por hordas nazistas na década de 1930. Pense nos
“educadores” degenerados que incendiaram 5 mil livros e revistas em
quadrinhos no Canadá, em nome de causas “progressistas”.
Livros
digitais não queimam, não se estragam. Podem se espalhar em e-mails, em
grupos de WhatsApp ou em pendrives passados de mão em mão. São
incontroláveis.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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