Os resultados desse movimento intelectual estão nos jornais e nas TVs, na oposição e na situação. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Metallica
é uma banda de rock surgida em 1981 nos Estados Unidos. Em atividade
até hoje, tem fãs no mundo inteiro. Seu canal oficial do YouTube tem
7,64 milhões de inscritos. Zé Vaqueiro nasceu em 1999 no município
pernambucano de Ouricuri, divisa com o Piauí. Seu canal oficial no
YouTube tem 4,04 milhões de inscritos. Seus vídeos com menos
visualizações têm uns milhões. A música “Cangote”, lançada há nove
meses, tem 204 milhões de visualizações; “Volta comigo bb”, lançada há
seis meses, tem 158 milhões. Os clipes vão ficando mais produzidos, e
sua nova aposta, “Fim da noite”, conta com zumbis dançando. Foi lançada
há um mês e tem 7 milhões de visualizações. Enquanto isso, os vídeos
mais recentes do Metallica costumam contar com centenas de milhares de
visualizações.
Se
você é de classe média e mora no Sudeste ou no Sul, provavelmente nunca
ouviu falar de Zé Vaqueiro. Eu só sei quem é porque a vizinhança ouve, e
nas gravações Zé Vaqueiro dá o próprio nome – ou seja, mesmo fazendo
esse sucesso todo na internet, a música dele é tipicamente ouvida alta,
em grupo e com gente dançando. As pessoas gostam e procuram na internet
depois. Na rua, passa carro de som vendendo pendrives com centenas de
músicas românticas.
Quanto
ao próprio Zé Vaqueiro, devo explicar também que ele pertence a um novo
movimento musical do Semiárido chamado “piseiro”, que é uma febre. As
músicas são românticas, o eu lírico sofre de amor etc., como é tradição
na música brasileira. A novidade é a junção do canto melódico e do
acordeão com a batida eletrônica. Esse fenômeno do Semiárido chegou com
força ao Recôncavo (que costuma absorver a produção musical do
Semiárido) e a todos os lugares de colonização nordestina, a saber: a
Amazônia e favelas do Sudeste. Com esse perfil de fã, Zé Vaqueiro, aos
22 anos, conseguiu se tornar um fenômeno comensurável ao Metallica no
YouTube.
Da internet para a sociedade como um todo
Deixemos
as particularidades dos astros do piseiro com quem queira estudar
música brasileira e retenhamos uma coisa disso tudo: com a difusão da
internet, fenômenos culturais particulares tomam dimensões colossais
antes de deixarem de ser particulares. Zé Vaqueiro é um ilustre
desconhecido para a generalidade dos brasileiros, mas, ao mesmo tempo,
uma espécie de fenômeno de massas dentro de um nicho.
Peguemos
o samba para comparar. O samba surgiu no Recôncavo há mais de cem anos
atrás e poderia ter se mantido mero regionalismo se não tivesse
houvesse, no começo do século passado, uma grande migração de negros
baianos para os morros do Rio de Janeiro. Lá, o samba se disseminou por
várias classes sociais e terminou ganhando dimensões nacionais graças ao
rádio. E eis toda a diferença: o rádio era ouvido por todo tipo de
gente, com uma única programação para todo tipo de gente. Ainda que só
algumas pessoas gostassem de samba, e os sambistas constituíssem um
nicho, eles não permaneciam incógnitos aos olhos do comum da sociedade.
Depois, a televisão tomou esse lugar, e até aqui estamos acostumados a
uma ideia monolítica de fama segundo a qual os famosos são conhecidos
por todos. Essa ideia é falsa, e do apego a ela se segue muita alienação
da parte da imprensa tradicional.
Precisamos
então abandonar essa ideia e conviver com a noção de que mil fenômenos
culturais de massa se desenrolam incógnitos sob o nosso nariz. Eles
continuarão incógnitos até romperem a barreira do nicho e se tornarem
conhecidos do público geral.
No mundo das letras tal como na música
O
fenômeno Zé Vaqueiro tem um precedente no reino das letras. Eu me
lembro que em 2018, quando Bolsonaro recém-eleito apareceu com o
best-seller de Olavo de Carvalho na mão, muita gente teve que se
inteirar de quem era aquele senhor. Seus pupilos costumam explicar o seu
sucesso somente através de questões intelectuais e políticas;
esquecem-se de apontar que Olavo de Carvalho foi vanguarda no uso da
internet como meio de disseminação de um movimento. Enquanto todos os
outros homens de letras intelectuais escreviam em papel (livros e
jornais impressos) ou se valiam de instituições (universidades e canais
de TV), Olavo era um indivíduo que, pessoalmente, atraía discípulos e se
comunicava com eles por meio da internet. Que eu saiba, isso começou na
época do Orkut, ou seja, meados dos anos 00. (O Orkut existiu de 2004 a
2014. Pela minha memória, o Facebook começou a substituí-lo em 2010 e o
povo mais esnobe ficava reclamando da “orkutização”.) O Orkut coexistiu
com blogues, que foram veículos bem importantes nessa época.
Ao
contrário da maioria da população brasileira, eu tomei ciência do
olavismo antes da eleição de Bolsonaro. Na virada da década de 00 para a
de 10 eu estava na UFBA cursando filosofia, e já nessa época havia
olavetes no alunado fazendo proselitismo. Esse movimento gestado na
internet não saltara direto para o centro das atenções nacionais; em vez
disso, teve sua fase intermediária em que partiu para conquistar novos
adeptos num ambiente tradicional. É como o piseiro: tem a internet como
veículo de divulgação, mas ocupa os lugares mais tradicionais, os mesmos
em que se ouve pagode ou forró.
Para
reforçar a comparação, devo mencionar que Zé Vaqueiro tem contrato com a
Sony. Antes de vir para o centro das atenções, Olavo de Carvalho tinha
contrato com a Record e vendia montanhas de livros. Além de migrarem
para espaços físicos tradicionais, esses movimentos se valem também de
veículos tradicionais, tais como a editora e a gravadora.
Se
eles terminaram por se fazer presentes em espaços e veículos
tradicionais, por que não dizer que são, por fim, apenas fenômenos
comuns diferenciados somente pelo peso do digital na origem? Pelo fato
de continuarem uma incógnita para o público geral, e de continuarem,
portanto, dependendo da internet para ser comunicarem. A Sony e a Record
não se interessaram por Zé Vaqueiro e Olavo de Carvalho por causa da
Globo, mas sim por causa do seu público consolidado por meio da
internet.
O olavismo continua subdimensionado
Olavo apareceu na nossa sala de jantar quando Bolsonaro foi eleito e, após alguns barracos, saiu dos holofotes.
Agora,
em 2021, assistimos a um crescente antibolsonarismo alheio à tradição
da esquerda. Nomes dessa ala são Martim Vasques da Cunha, Joel Pinheiro
da Fonseca, Alexandre Borges, o MBL (cujo coordenador Ricardo Almeida
era um dos meus colegas de curso olavetes). Todos esses nomes estiveram
envolvidos no ambiente intelectual criado por Olavo de Carvalho na
internet e viram nele, em algum momento, uma referência para guiar
leituras e enfrentar o status quo. A seminal editora É Realizações
também teve envolvimento com esse círculo.
Hoje
é muito fácil apontar para o olavismo como algo restrito ao gabinete de
Carlos Bolsonaro. É fácil, é simplório e é errado. Os resultados desse
movimento intelectual estão nos jornais e nas TVs, na oposição e na
situação. O olavismo teve cismas e rachas. O marxismo também. Um homem
formado pelo olavismo pode ser muito diferente de outro. No marxismo,
também. No entanto, temos uma fartura de documentação para dimensionar a
influência do marxismo na cultura brasileira. No caso do olavismo, a
tarefa é muito mais difícil – ainda que tudo tenha se passado nos
últimos 20 anos, e debaixo do nosso nariz.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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