“A falácia romântica de Rousseau, de que é a sociedade que corrompe o homem e não o homem que corrompe a sociedade, coloca uma cortina lisonjeira entre nós e a realidade”, escreveu Kubrick em 1972. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
Stanley
Kubrick (1928-1999) é um dos mais extraordinários criadores do século
XX. Digo criadores em vez de realizadores porque num tempo de decadência
e cancelamento culturais, em que a imaginação e a criação que dela
resulta vão sendo cada vez mais raras, Kubrick aparece como um grande
inovador e criador.
E
viveu e trabalhou em plena segunda metade do século XX, onde não
faltaram, no cinema, grandes inovadores e criadores: na Anglo-América –
Orson Welles, Elia Kazan, John Huston, Alfred Hitchcock, Billly Wilder,
John Ford, Brian de Palma – e no resto do mundo – Serguei Eisenstein,
Luis Buñuel, Federico Fellinni, Luchino Visconti, Akira Kurosawa, Werner
Herzog, Jean Renoir, René Clément, Jean Luc Godard, Pedro Almodovar. E
muitos outros admiráveis “caçadores de imagens” que deixo de fora mas a
quem agradeço milhares de horas de sonho e de luz.
Em
quase cinquenta anos de carreira e depois de um início de film noir,
Kubrick realizou uma série de filmes magistrais sobre os grandes temas
da Humanidade e da América, começando por duas fitas protagonizadas por
Kirk Douglas – Paths of Glory (1957) e Spartakus (1960).
Como
com Kubrick a verdade das coisas se impõe ao resto, Paths of Glory é um
filme antimilitarista, numa época em que contestar o establishment
militar não estava muito na moda, que sublinha a estupidez cínica dos
altos comandos que ganham promoções e condecorações à custa de massacres
da sua própria tropa. E Spartakus é uma ilustração do pensamento
nietzschiano de que a revolta é a nobreza do escravo.
Em
1962, faz a adaptação de Lolita, o livro-escândalo de Nabokov, num
filme de culto com James Mason, Shelley Winters, Sue Lyon e Peter
Sellers. Depois, vem a charge à Guerra Fria, em Dr. Strangelove or: How I
Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, com Sellers, George C.
Scott e Sterling Hayden.
Em
1968 2001 Odisseia no Espaço, em 71 Laranja Mecânica, em 75 Barry
Lindon e em 1980 um filme de terror, The Shining, a partir do thriller
de Stephen King. O Vietname de Kubrick ficou em Full Metal Jacket. Pelo
meio deixou de parte projectos avançados sobre o Holocausto e Napoleão.
No fim fez a sátira social Eyes Wide Shut, com Nicole Kidman e Tom
Cruise, que estreou postumamente. É toda uma obra invulgarmente original
e variada na sua universalidade.
O mecanismo da laranja
A
Clockwork Orange, A Laranja Mecânica, foi apresentado em Nova Iorque,
em 19 de Dezembro de 1971, inspirado no romance distópico de Anthony
Burguess, de 1962. Numa Inglaterra futura, Alex Delarge lidera um
quatuorde delinquentes juvenis – Dim, Georgie, Pete e o próprio Alex.
São violentos, roubam, assaltam, agridem, violam, matam. A deles, é uma
violência gratuita, cobarde, sem riscos. Nas suas andanças, assaltam a
casa de campo de um escritor, Mr. Alexander e espancam-no e violam e
matam-lhe a mulher, ao som de Singing in the Rain.
Alex,
magnificamente interpretado por Malcolm McDowell, gosta especialmente
de Beethoven e particularmente da Nona Sinfonia e gosta de temperar
sadicamente o mal que faz com a harmonia da música.
Mas
depois do crime vem o castigo: Alex entra em ruptura com os cúmplices,
que o traem e entregam, é preso, julgado e condenado por homicídio. Ao
fim de dois anos de cárcere, voluntaria-se para uma experiência de
“aversion therapy”, um sofisticado processo pavloviano que associa
sensações desagradáveis a práticas de violência. O condenado Alex vê
projectadas no écran cenas de sexo e de brutalidade ao som de Beethoven,
enquanto lhe injectam doses de mal-estar. Assim, vai ficando pacífico e
impotente até terminar com sucesso a sua “reeducação” de duas semanas,
para grande satisfação do Ministro do Interior.
É
então posto em liberdade, mas está na miséria; e aqueles a quem
prejudicou vão vingar-se. É atacado por mendigos, leva uma sova de Dim e
Georgie, que, entretanto, ingressaram na Polícia, e acaba descoberto e
punido por Mr. Alexander, o escritor agredido, que está agora numa
cadeira de rodas mas que, com a ajuda de amigos, o tortura ao som da
Nona Sinfonia. Alex tenta suicidar-se, mas acaba por ficar a trabalhar
para o Ministro, na campanha eleitoral, como testemunha-cartaz dos
admiráveis feitos da Ciência e efeitos da reeducação médica dos
criminosos.
“A voz do Fascismo”
Assim
se fecha o ciclo da brutalidade, o crime e castigo segundo Burgess e
Kubrick. O filme estreava num tempo de revolta juvenil e de
libertarianismo de costumes, um tempo que sucedia aos quietos anos
cinquenta. A partir dessa sua trágica opera-bufa, Kubrick retratava a
violência dos gangues que queimavam os “sem-abrigo”, macaqueavam orgias
romanas e se excitavam e entorpeciam nos paraísos artificiais das
drogas. Um mundo tão verdadeiro como o dos políticos corruptos, dos
consultores de comunicação enervados, do “recurso à ciência” para fins
eleitorais ou de “reeducação”.
Um
mundo longe do mundo imaginário de paz e amor cantado, também nesse ano
de 1971, por John Lennon (que, de resto, definiria o seu Imagine como
uma espécie de “sugar coated communist manifesto”). Talvez por isso A
Laranja Mecânica tenha sido objecto da crítica de Fred Hechinger no New
York Times, que, em 13 de Fevereiro de 1972, escrevia contra Kubrick:
“Um
liberal atento deve reconhecer a voz do fascismo (…) E a tese de que o
homem é irremediavelmente corrupto é a essência do fascismo”.
As
acusações de Hechinger tiveram, duas semanas depois, a resposta de
Kubrick, que contestava que o seu filme fosse uma “apologia anti-liberal
e de totalitarismo niilista”. Nessa longa carta, Kubrick, citando a sua
observação da História e a teologia cristã, negava a narrativa do homem
como naturalmente bom, como um bom selvagem corrompido pela sociedade,
pelo poder organizado, pela propriedade, pela religião. Mas acrescentava
que o seu pessimismo antropológico, ou o seu realismo, não fazia dele
um tirano ou um fascista.
Depois,
a propósito da terapia prisional aplicada a Alex, sublinhava que a
terapia nunca poderia ser redentora porque suprimia a vontade e a livre
escolha, transformando a sociedade numa sociedade de laranjas mecânicas.
E, sem medo, escrevia:
“O
homem não é um nobre selvagem, é um selvagem ignóbil. É irracional,
brutal, fraco, estúpido, incapaz de ser objectivo em causa própria ou
quando se jogam os seus interesses … E qualquer tentativa de criar
instituições sociais baseadas na visão falsa da natureza do homem,
estará condenada ao fracasso.”
E concluía:
“A
falácia romântica de Rousseau, de que é a sociedade que corrompe o
homem e não o homem que corrompe a sociedade, coloca uma cortina
lisonjeira entre nós e a realidade”.
Para
Kubrick, Rousseau substituíra o Deus transcendente e a sua religião
pelo culto do homem naturalmente bom. E citava o antropólogo Robert
Ardrey, o “autor maldito” de The Social Contract e African Genesis,
lembrando que, mais que anjos caídos, nós, os seres humanos, éramos, ou
também éramos, macacos levantados do chão, com todos os instintos dos
hominídeos – de identidade, de território, de defesa do grupo. E capazes
de matar por eles.
Rousseau e os Talibãs
Reagindo
ao radical pessimismo de Kubrick e Ardrey, diria que oscilamos entre o
anjo e a besta – mas que esquecer a besta nos leva quase sempre ao menos
angelical dos mundos.
Li
agora nos “Arquivos” de Kubrick, editados por Alison Castle, esta
polémica no New York Times. Li-a neste preciso momento, em que vemos e
vivemos de perto um mundo devastado e amedrontado pela pandemia, pelos
feitos dos bons selvagens talibãs em Cabul e do jihadismo no Norte de
Moçambique ou no Sahel e até nas cidades de França. Um mundo em que
centenas de milhões de seres humanos continuam a viver na fome, na
miséria, dominados pelas tiranias mais diversas, vítimas do crime
organizado e da exploração em infinitas formas.
E,
no entanto, neste mesmo mundo, o discurso oficial das grandes
organizações internacionais e multilaterais continua a ser a versão
revista, aumentada e requintada da cartilha de Rousseau, presente nos
estatutos, nas declarações, nas resoluções, nas convenções destes
respeitabilíssimos areópagos da Humanidade. Areópagos que preferem falar
do tempo, das ameaças climáticas, por mais reais e por mais
estridentemente anunciadas pela pequena profeta sueca que sejam. Ou
então de novos e também verdes e floridos “direitos humanos”, para
selvagens cada vez melhores e mais nobres e mais angelicais. Ou da
protecção dos dóceis animais, que até tiveram prioridade sobre as
pessoas num voo de Cabul para Londres.
E
para tudo isto preparam-se agendas especiais, cancelam-se e proíbem-se
autores, práticas culturais, modos de vida. E destroem-se estátuas,
mudam-se nomes de ruas e universidades, criam-se leis especiais para os
“discurso de ódio” e impõe-se o terror e a morte moral dos dissidentes.
A
nova Inquisição segue os passos do Sr. Hechinger, esse “liberal
atento”, que viu o ovo da serpente, ou o fascismo palpitante na Laranja
Mecânica e no pessimismo antropológico de Kubrick. Se fosse hoje
Hollywood proibia-o. Talvez ainda o venha a fazer. Também depende de nós
deixar que o faça ou que o façam.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário