Merquior declarava ter um projeto: formular uma teoria do liberalismo antigo e moderno. Em especial, acreditava que um novo liberalismo deveria surgir inspirado em certas características do liberalismo antigo. Pedro Menezes via Gazeta do Povo:
No
início dos anos 1980, o economista Pérsio Arida se viu numa situação
estranhíssima: durante um congresso acadêmico, em meio à elite da
ciência social europeia, ele se viu cercado por um grupo de ingleses
ansiosos pelas novidades do pensamento liberal brasileiro. Pérsio fez
novas perguntas para tentar entender aquela história, mas a confusão
aumentou quando mencionaram José Guilherme Merquior. Ele conhecia aquele
nome, mas lembrava de Merquior como crítico literário e diplomata, sem
qualquer relação com o liberalismo.
O
caso, contado pelo próprio Pérsio numa live em homenagem ao aniversário
de 80 anos de Merquior, revela alguns fatos esquecidos sobre o
homenageado. Um deles é o convívio mais intenso com liberais
estrangeiros do que os brasileiros, facilitado pelo trabalho no
Itamaraty. Outro é o tardio interesse de Merquior pelo liberalismo, que
começou relativamente pouco antes da precoce morte em 1991, aos 49 anos.
A
biografia de Merquior justifica sua fama: foi um dos gênios brasileiros
do século passado. Sua carreira como crítico literário começa antes dos
18 anos e, aos 22, sua reputação era suficiente para editar uma
antologia da poesia brasileira ao lado de Manuel Bandeira. Daí Merquior
vai para o Itamaraty, se forma como doutor em Letras pela Sorbonnne e,
na virada dos anos 1970 para os 1980, parte para o segundo doutorado,
desta vez em sociologia na London School of Economics. No curso em
Londres, foi orientado por ninguém menos do que Ernest Gellner,
peso-pesado do liberalismo europeu. Foi a partir daí, nos últimos 10
anos de vida, que começou a se dedicar ao estudo do liberalismo.
Nesse
período, o próprio Merquior declarava ter um projeto: formular uma
teoria do liberalismo antigo e moderno. Em especial, acreditava que um
novo liberalismo deveria surgir inspirado em certas características do
liberalismo antigo, como a pluralidade e a ausência de modelos gerais
aplicáveis a qualquer país. Portanto, o projeto se desdobrava num
segundo propósito: pensar um novo liberalismo para o Brasil.
Este
ambicioso plano intelectual vinha de um brasileiro acostumado a elogios
de Raymond Aron, Isaiah Berlin, Ralf Dahrendorf e outros dos maiores
pensadores liberais do seu tempo. Merquior não estava para brincadeira.
Os
avanços eram animadores. No ensaio “Renascença dos Liberalismos: uma
paisagem teórica”, disponível gratuitamente na internet, temos boas
pistas do que Merquior pensava. Ele abre comemorando mudanças no debate
intelectual no fim dos anos 1980. “Outrora, o liberalismo vivia na
defensiva, porque os imperfeitos, incompletos e em boa parte injustos
regimes liberais eram sempre comparados, com evidente desvantagem, com o
ideal socialista de liberdade na justiça”, escreveu. Em meio à ruína da
União Soviética, Merquior via a renascença do liberalismo.
Importante
observar o uso da palavra “liberalismos”, no plural, destacando a
diversidade de pensamento que sempre marcou a tradição liberal. Esta
divergência interna não seria problema para Merquior, mas justamente uma
solução. A presença da direita à esquerda seria um ponto forte dos
liberais, tanto na política eleitoral quanto no pensamento político,
refinado pelo duro debate interno.
No
ensaio, Merquior participa deste debate interno e desfere críticas
cortantes ao que chamava de “Estadofobia”, correntes liberais que davam
excessivo foco ao tamanho do Estado. Defensores do libertarianismo de
estilo americano são descritos como “fanáticos do Estado mirim”.
Em meio aos debates em torno da Constituição de 1988, destaco um trecho do que Merquior escrevia sobre as funções do Estado:
“Em
sociedades como a brasileira, não me canso de repetir, o problema do
Estado não tem uma e sim duas faces. Pois a verdade é que temos, ao
mesmo tempo, Estado demais e Estado de menos. Demais, certamente, na
economia, onde, em diversas áreas, o Estado emperra, desperdiça, onera e
atravanca. De menos, no plano social, onde ainda são gritantes e se
tornaram inadmissíveis tantas carências em matéria de saúde, educação e
moradia. (...)
O
Estado é, efetivamente, o principal, senão o único mecanismo social por
cujo intermédio se conseguiu dar força ao direito e não direito à
força. O Estado social neo-republicano no Brasil se propõe exatamente
isso: ser social sem nem por um instante deixar de ser um Estado de
direito, ou seja, uma construção jurídico-liberal. (...) Liberalismo não
quer dizer menos Estado — quer dizer mais liberdade. E o Estado social
pode ser um poderoso instrumento de universalização da liberdade. Bobbio
tem razão: a dimensão social da democracia, tanto quanto a sua face
política, é um desdobramento do liberalismo.”
Pouco
depois, veio o câncer de estômago e o projeto de Merquior nunca
terminou. Passados mais de 20 anos, o Brasil segue pouco relevante na
história do pensamento liberal, tal como nos tempos do governo
Figueiredo, quando Pérsio Arida se viu cercado por intelectuais ingleses
interessados pelo liberalismo brasileiro.
A
Estadofobia dominou grande parte dos liberais deste tempo, que tratam
regras simples de controle da pandemia como exemplos de tirania estatal.
O pluralismo liberal foi esquecido — Rodrigo Constantino, ex-presidente
do Instituto Liberal, chega a fazer piada sobre liberais de esquerda,
grupo que considera inexistente.
O
contexto da morte de Merquior dá algumas pistas do que aconteceu. Por
que um dos seus últimos atos políticos foi apoiar Fernando Collor?
Evidentemente, um dos motivos foi a ausência de coisa melhor. Não havia
um partido convincente como liberal em 1989, nem movimento liberal
organizado e influente na sociedade civil, com militância, líderes
políticos e intelectuais. Em suma, não existia liberalismo brasileiro,
apesar de existirem meia dúzia de liberais brasileiros.
Justamente
pela ausência de um movimento em seu redor, Merquior não teve
herdeiros. É interessante notar como ele foi pouco relevante na formação
intelectual do novo movimento liberal que surge na esteira do
antipetismo. Os ‘Estadófobos’ do libertarianismo americano tiveram
prioridade. Com bases tão frágeis no campo do pensamento, não é estranho
que esse movimento esteja se desintegrando no governo Bolsonaro — o
Partido Novo não me deixa mentir.
Escrever
que Merquior morreu sem herdeiros é uma injustiça. Apesar de ter sido
esquecido após o falecimento do autor em 1991, a obra vem sendo
rediscutida em anos recentes. A editora É Realizações, o Livres e
pesquisadores de todo país têm sido fundamentais nessa retomada da obra
de Merquior.
Assim
como a morte da influência de um autor pode ser revertida, a morte do
liberalismo brasileiro também pode ser. As ruínas do movimento finado
podem servir como ponto de partida para uma refundação — desta vez, com
bases intelectuais mais sólidas. Um bom primeiro passo seria olhar para
alguns pensadores liberais brasileiros, como Merquior e líderes
abolicionistas, ao invés de dar bola para minarquistas e
anarcocapitalistas do Alabama.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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