BLOG ORLANDO TAMBOSI
No novo filme, “Nem Tudo se Desfaz”, o objeto de Josias Teófilo é a realidade política e social do Brasil entre 2013 e 2018. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Josias
Teófilo é um cineasta tão livresco quanto possível. Seus filmes têm a
estrutura de um ensaio: há uma tese, e a tese é amparada por citações e
fatos. Se um ensaísta abre um livro e aspeia a fala de um estudioso,
esse cineasta põe o estudioso diante da câmera e pede que fale sobre um
determinado assunto para, em seguida, pegar a citação. E se um ensaísta
usa recortes de jornal para se referir a eventos passados, Josias
Teófilo usa gravações com imagem e som. Em “O Jardim das Aflições”, essa
estrutura parece estar diretamente subordinada ao livro homônimo de
Olavo de Carvalho. (Digo “parece” porque não li o livro.) Olavo tem uma
teoria filosófica sobre a maneira ideal de conduzir a vida, e Josias, ao
tempo que recolhe as falas explicativas de Olavo, mostra-o vivendo de
acordo com as próprias concepções.
O
Olavo sóbrio e estoico desse filme tem uma face completamente distinta
do Olavo barraqueiro e descontrolado que mobilizava uma legião de trolls
nas redes sociais. Não quero dizer com isso que o documentário seja uma
falsificação da realidade; afinal, é plausível que o filósofo pregue
uma coisa que ele próprio não consiga cumprir.
Um
documentarista que mostrasse o quotidiano de Jean-Jacques Rousseau como
preceptor para ilustrar a filosofia contida em “Émile, ou de
l’éducation” faria uma obra fidedigna, desde que tivéssemos às claras o
fato de que o objeto é uma obra filosófica e não a realidade ou a pessoa
do filósofo. Jean-Jacques Rousseau continuaria sendo um pai que
entregou cinco filhos para a adoção, independentemente da qualidade de
sua obra ou de seu trabalho como preceptor. Aponto somente que aquele
não é um filme sobre a pessoa de Olavo, mas sobre a cosmovisão de Olavo.
O objeto político
No
novo filme, “Nem Tudo se Desfaz”, o objeto de Josias Teófilo é a
realidade política e social do Brasil entre 2013 e 2018. Olavo deixa de
ser a sua referência única, e, ao contrário de documentaristas de
esquerda, ele se empenha em ouvir gente de todo tipo de opinião
diferente. São ouvidos notórios esquerdistas, como Idelber Avelar e João
Cezar Castro Rocha. Olavo e olavetes que não aderiram ao
antibolsonarismo, como Pedro Sette-Câmara e Francisco Escorsim, também
são ouvidos. Constam os filhos de Bolsonaro e até Steve Bannon. Há ainda
jornalistas que não pertencem a nenhum movimento específico, como
Augusto Nunes. Com tanta gente diferente diante de sua câmera, Josias
reúne uma série de citações para defender uma teoria: em 2013 iniciou-se
uma Revolução no Brasil da qual Bolsonaro foi o beneficiário em 2018.
O
autor que aparece por mais tempo no filme é João Cezar de Castro Rocha,
professor de literatura da UERJ. Ele aponta o caráter inédito das
manifestações de direita, que não foram convocadas por partidos, nem
sindicatos, nem organizações classistas. No entanto, em suas breves
aparições, Olavo de Carvalho é o único a usar a expressão “Revolução”
para descrever o evento.
A
controvérsia pode ter muito de lexical; afinal, a aceitação ou rejeição
da tese de um processo revolucionário foi iniciado em 2013 depende do
conceito de revolução que tenhamos. De minha parte, eu a aceito se
adotarmos o significado lato de Revolução como um processo de subversão
da ordem política vigente. O documentário tem inegável valor
historiográfico ao mostrar como fato inequívoco que as manifestações de
massa como mecanismo de pressão são uma novidade na política brasileira
surgida em junho de 2013.
Mas
como as massas verde-amarelas estão sendo cada vez mais desrespeitadas
pelo status quo ante, devemos ter aberta também a possibilidade de uma
Revolução nos moldes nada ambíguos que incluem derramamento de sangue,
por menos compatível que isto seja com a índole brasileira.
Não
estou ciente de Olavo de Carvalho ter escrito um texto sobre sua teoria
da Revolução Brasileira, ou se é tudo telefone sem fio e ruído de rede
social. Se ele não tiver redigido sua teoria, o documentário de Josias
ganha ainda mais valor histórico. Sobretudo porque temos visto essa tese
se disseminar pela direita, para além dos ambientes de formação
olavete. Tenho em mente Rodrigo Constantino e Ana Paula Henkel, que
adotaram a tese da Revolução. Em 2013 nenhum dos dois tinha nada a ver
com olavismo; Constantino, em particular, é de uma corrente política
cuja existência desmente os olavetes mais exaltados que reduzem a
direita ao olavismo.
Recordações
Creio
que, assistindo ao filme, todo mundo se lembre do ambiente que
frequentava durante a eclosão dos protestos. Num documentário como o de
Petra Costa, em que a cineasta fica falando de si própria, isso não
acontece. Particularmente, o que mais me chamou a atenção, na olhada em
retrospecto, foi o caráter efêmero e artificial das lideranças do MPL
(Movimento Passe Livre), rival do MBL. Olhando agora, me parece evidente
que se tratou de uma tentativa desesperada do PT de dizer que a
esquerda era a dona dos protestos. No fim, era um endosso da tese de
Lula, segundo a qual o povo, depois de ganhar o pão, queria que o
governo desse também a manteiga.
Como
o meu ambiente de então era o universitário; em particular, de uma
corrente já extinta que poderia ser descrita como esquerda democrática
que torcia o nariz para o identitarismo e adorava falar mal dos
"pedabobos" (isto é, os freireanos), creio que valha anotar uma coisa
que pode passar despercebida para quem estava na direita e não conhece a
esquerda. Essa coisa é: do fato de a esquerda admitir que as
manifestações não foram convocadas por partidos políticos e entidades de
classe não se segue que a esquerda admita que as manifestações foram
espontâneas.
No
calor do momento, a esquerda batizou o fenômeno como Jornadas de Junho e
adotou a tese de Marcos Nobre, professor de filosofia da Unicamp. Ele
rodou as federais brasileiras divulgando a sua interpretação segundo a
qual não havia crise no sistema democrático, mas sim uma revolta contra
uma força imobilizadora à qual ele chamou de “peemedebismo”. É uma
teoria mais factível do que as teorias petistas que vieram depois – mas é
conciliável com o petismo em si mesmo. E isso explica por que ganhou
aceitação inicial das federais: bastava dizer que o povo tinha um
problema com o PMDB, não com o PT. O problema era que o PT não era
progressista o suficiente e se prendia a forças do atraso. Essas forças,
no frigir dos ovos, eram facilmente identificáveis com o Congresso; e
desse período até 2016 era normal a esquerda reclamar muito do Congresso
sem que fosse tachada de antidemocrática por isso.
Na
época do impeachment, eu me lembro de o colega petista estar furioso
com os black blocs e com o PSOL usando o seguinte raciocínio: se não
fossem aqueles burguesinhos dos black blocs, não teria junho de 2013; e,
se não fosse junho de 2013, não tinha impeachment. A acompanharmos a
tese defendida por Josias Teófilo, o meu colega petista tinha razão.
Esse
pensamento foi difundido pela esquerda e se tornou geral, encontradiça
dentro e fora do PT. Hoje, black bloc faz mea culpa por 2013. Mas de lá
pra cá esse pensamento foi ganhando um elemento conspiratório: os
burguesinhos eram, na verdade, teleguiados pela CIA. Depois viraram
teleguiados pelo gênio do Steve Bannon etc. Foi o jeito que eles
encontraram para dizer a si mesmos que não tinham perdido o amor do
povo: era tudo culpa dos EUA. A última teoria dessa estirpe é a de que
Bolsonaro deu um golpe em 2018 via WhatsApp com Steve Bannon e por isso
as eleições não foram legítimas. É ridículo? É. Mas é isso mesmo; a
esquerda foi para o mundo da lua em 2015 e não voltou mais.
Por
isso é que é fácil pegar professores de esquerda dispostos a admitir
que as manifestações de junho são inéditas: eles acreditam que dá pra
fazer feitiçaria com a internet e teleguiar as pessoas para irem às
ruas. Assim, temos, confundidas no documentário de Josias, duas teorias
parecidas porém opostas sobre junho de 2013: a esquerdista, que não crê
na espontaneidade das massas, e a olavista, que crê. Esta é uma
discordância que segue viva em 2021, já que a esquerda acredita
sinceramente que a censura da internet é capaz de acabar com a
“feitiçaria” da direita. A teoria que começou petista ganhou o status
quo e a teoria que começou olavista ganhou a direita não-olavista.

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