Às véspera do 7 de setembro em que Bolsonaro exortou seus apoiadores a irem às ruas com bandeiras antidemocráticas, a cientista política Daniela Campello e a economista Joana Monteiro explicam por que, independentemente do risco de um golpe de Estado clássico, a democracia já está sofrendo graves danos. Fernando Dantas para o Estadão:
Às
vésperas das manifestações convocadas por Jair Bolsonaro para o 7 de
setembro, Daniela Campello, cientista política da Ebape-FGV e
pesquisadora residente do Wilson Center, em Washington, vê um processo
indiscutível e em aceleração de esgarçamento institucional, que pode ter
consequências para a democracia brasileira que irão bem além de 2022.
Por
um lado, ela considera que Bolsonaro está severamente enfraquecido em
termos eleitorais, com perspectivas de reeleição muito enfraquecidas.
Os
ventos favoráveis da alta de commodities, que poderiam melhorar a
economia em 2022, já estão mais fracos e o Centrão, depois de arrancar
tudo o que pode do Executivo, não terá dificuldade em aderir a outra
candidatura em 2022 – como a de Lula, que tem longa experiência de lidar
com o grupo político.
Na
visão da pesquisadora, o próprio Bolsonaro deve perceber que a via
eleitoral não vai funcionar em 2022, um incentivo para abandonar o
eleitor mediano, que preza uma boa economia e rejeita o caos, e se
voltar para sua base mais fiel (que também pode dificultar um
impeachment).
Essa
perspectiva de derrota eleitoral reforçou a visão antidemocrática e
golpista que Bolsonaro sempre cultivou. Para Campello, o presidente não
tem condição de construir uma coalizão para criar um governo autoritário
estável, faltando apoio popular, do empresariado, de atores externos
etc.
O
problema, indica a pesquisadora, é que “o fato de Bolsonaro não ter
chance de consolidar um governo autoritário não impede que ele tente;
nesse sentido ele não é um ator político racional, não faz cálculo de
custo e benefício”.
Assim,
ela prevê que o presidente “vai esticar a corda”, qualquer que seja o
resultado das manifestações de amanhã, grandes, médias ou pequenas,
pacíficas ou violentas.
“E ele está disposto a fazer e vai fazer, com chances ou sem chances”.
A cientista política nota que Bolsonaro não sabe construir, mas sabe destruir, e sempre tende a optar por essa sua vocação.
Ela
considera que “já há um golpe em curso”, à medida que a sociedade reage
pouco a deformações do funcionamento democrático que seriam impensáveis
há pouco tempo.
Campello
cita a convocação pelo presidente de hordas de pessoas, financiadas
para viajar e se alojar com vistas a uma manifestação em que o
fechamento do Supremo com certeza deve ser uma das reivindicações.
Hoje,
ela diz, os militares voltaram a ter voz ativa em discussões sobre o
sistema político, voto eletrônico e outros temas sobre os quais deveriam
se calar – enquanto militares – numa democracia.
Segundo
a pesquisadora, os atores políticos não bolsonaristas já embutem na sua
reflexão, estratégia e ação ameaças da ações desestabilizadoras por
parte da Polícia Militar ou uma intervenção política mais contundente
das Forças Armadas.
Intelectuais
pensam duas vezes antes de intervir no debate público quando um
procurador-geral da República, Augusto Aras, ajuíza uma queixa-crime
contra um professor de Direito, Conrado Hübner, considerando que
críticas veementes ao PGR são crimes de calúnia, injúria e difamação.
Da
mesma forma, manifestantes antibolsonaristas pensam duas vezes antes de
ir às ruas disputar espaço com os apoiadores do presidente, com medo de
sofrer violência com tácita omissão da Polícia Militar.
“Esses riscos embutidos já mudaram a natureza do que estamos vivendo”, diz Campello.
Na
sua interpretação, todos aqueles fatos são sintomas de que a democracia
já está sofrendo estragos que podem ter longa duração (assim como a
economia, com o desincentivo ao investimento).
A
cientista política se diz mal impressionada sobre como “Bolsonaro tem
conseguido curvar os atores relevantes às suas preferências”, como no
caso das idas e vindas da Febraban em relação ao manifesto em defesa da
democracia e da harmonia entre os Poderes.
Campello
pensa que, se houver violência expressiva na manifestação de amanhã,
talvez alguns atores, como o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e
a PGR, entendam os riscos crescente de deixar o barco navegar até 2022
sem um processo de impeachment de Bolsonaro. Mas mesmo isso é incerto,
para ela.
PM
bolsonarista – Em relação ao problema específico da PM, a economista
Joana Monteiro, diretora do Centro de Ciência Aplicada à Segurança
(CCAS) da FGV, que teve intensa interação com militares e policiais nas
suas atividades profissionais nos últimos anos, comenta que “os
policiais tendem a ser muito bolsonaristas mesmo”.
Ela
está impressionada com o acirramento do discurso de apoio a Bolsonaro e
de crítica a outros Poderes dentre as forças policiais.
Monteiro
entende que algumas PMs, como a de São Paulo, tem elevado controle
sobre a tropa, mas há muita variação na hierarquia e disciplina entre as
polícias militares do país.
Ela
nota que a atuação da polícia em manifestações de rua não é
perfeitamente controlada e as inclinações políticas dos PMs podem
interferir – tanto em maior tolerância a excesso de manifestantes de
direita quanto em excessos policiais contra os de esquerda.
“Se tem um policial lá na ponta que acha que aqueles manifestantes não prestam, isso pode dar margem a excessos e descontroles”.
Por
outro lado, a pesquisadora considera difícil que revoltas de PM mais
institucionalizadas, como a ocorrida no início do ano passado no Ceará,
se generalizem no País.
Na
visão de Monteiro, a razão da popularidade de Bolsonaro entre os
policiais é simplesmente que o presidente os defende incondicionalmente e
trabalha sempre na perspectiva do “nós contra eles”.
Ela
observa que, desde os anos 2000, categorias como promotores, juízes e
delegados federais tiveram substanciais ganhos salariais, enquanto o
mesmo não ocorreu em relação às PMs, que são estaduais.
É
um quadro particularmente difícil, prossegue a pesquisadora, porque
muitos Estados têm finanças sucateadas, de forma que os PMs são em geral
mal pagos frente a categorias similares, trabalham em más condições e
enfrentam risco de vida. Por outro lado, se aposentam muito cedo, o que
representa um custo brutal para o erário estadual.
Bolsonaro
defende a Polícia Militar – de forma incondicional e errada, claro –
nas operações que resultam em morte de alvos dos policiais, e estes veem
os críticos dessas ações como defensores da vida de bandidos à expensa
da vida de integrantes da PM.
Apesar
de todos os problemas relativos à polícia, Monteiro não pensa que
reside aí o maior risco de problemas institucionais e rupturas no
restante do governo Bolsonaro.
Para
ela, os maiores perigos estão na alçada de Bolsonaro diretamente, em
ações como a de simplesmente desobedecer a alguma determinação do
Supremo, ou por exemplo se recusar a assinar uma operação de Garantia da
Lei e da Ordem (GLO), envolvendo o Exército, em algum Estado – por
exemplo, com um governador de oposição – em que a ação, inação ou
insuficiência da polícia leve a uma situação grave de crime e desordem.
Situações
como essa, segundo a pesquisadora, não envolvem uma alternativa binária
entre golpe e não golpe, mas fazem parte do extraordinário processo de
esgarçamento institucional da democracia pelo qual o Brasil está
passando.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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