Gilmar Mendes tem tudo para virar herói da guerra contra o combate à corrupção. Augusto Nunes para a revista Oeste:
Já
devo ter evocado nesta coluna o advogado da minha terra que guardava
para o meio da apresentação das razões da defesa no tribunal do júri —
fossem quais fossem o réu e o crime cometido — a frase tremenda: “Nem
tudo é nada nem nada é tudo em matéria de principalmente!“. Ninguém na
plateia sabia o que aquilo significava, mas todos os espectadores
tratavam de controlar-se para não deslustrar a solenidade do julgamento
com uma ovação de comício. A inventiva inversão das mesmas palavras, o
prosaico advérbio virando um misterioso substantivo realçado pelo ponto
de exclamação, o ritmo empolgante do desfile de consoantes e vogais, a
voz de cantor de bolero — tudo conspirava para anunciar que ali estava
uma sumidade do mundo jurídico. Foi difícil recuperar-me do impacto
provocado pela descoberta de que o falatório não tinha pé nem cabeça.
Pronunciada
num hospício, a frase bastaria para que o mais otimista dos psiquiatras
desse o caso por perdido. Não pode ter cura um paciente capaz de
afirmar que nem tudo é nada nem nada é tudo em matéria de
principalmente. Pois a famosa criação do meu conterrâneo não é mais
enigmática, e parece bem menos amalucada, que a pinçada no pior
repertório de Ruy Barbosa pelo ministro Gilmar Mendes na sessão do STF
que decretou a suspeição de Sergio Moro no caso do tríplex do Guarujá — e
em todas as bandalheiras protagonizadas pelo Amigo da lista da
Odebrecht. Ao enunciar seu voto, o ministro Nunes Marques se amparou em
sólidos argumentos jurídicos para provar que a maioria dos colegas
estava errada. O Maritaca de Diamantino não gostou da audácia do caçula
do tribunal. Já tinha votado, mas reapareceu na telinha para demolir o
insurgente com uma lição curta e, sobretudo, grossa.
“Como
disse Ruy, o bom ladrão salvou-se, mas não haverá salvação para o juiz
covarde“, recitou o magistrado que nunca viu de perto alguma velha e boa
comarca. Como é que é?, espantaram-se com a citação do Águia de Haia os
espectadores da TV Justiça socorridos por mais de 15 neurônios. O que
uma coisa tem a ver com outra? O que há em comum entre o calvário de
Jesus Cristo, crucificado em companhia de dois gatunos, e a safadeza
urdida para livrar da merecidíssima cadeia um corrupto juramentado? O
bom ladrão é Lula? Nessa hipótese, o ator não ficaria mais confortável
no papel do mau ladrão, que morreu sem admitir os crimes que cometeu e
sem quaisquer vestígios de remorso? O juiz covarde seria Sergio Moro,
Pôncio Pilatos ou Nunes Marques? Ou Gilmar Mendes, que entre um pontapé
na Constituição e um carrinho por trás na moral e nos bons costumes
surrupia da população carcerária outro bandido de estimação?
Se
tivesse nascido em Taquaritinga, Nunes Marques dificilmente resistiria à
tentação de revidar a insolência com a frase do mesmo quilate: “Nem
tudo é nada…”. Seria divertido contemplar o desconcerto de Gilmar. Mas,
caso o destino me colocasse nas imediações do ministro piauiense, eu lhe
entregaria um papel com a reprodução do recado que passei ao
apresentador Jorge Escosteguy durante um Roda Viva estrelado por Orestes
Quércia, então governador de São Paulo. Aproximava-se o fim do primeiro
bloco quando um integrante da bancada começou a acenar freneticamente
para Escosteguy. Ele reivindicava a palavra com urgência urgentíssima.
Atendido,
o entrevistador caprichou na expressão enfezada e foi à luta: “Peço
licença para fazer uma provocação”, avisou o preâmbulo. Tensão no
estúdio. E então veio a pergunta: “Como é que o senhor se sente diante
do fato de ser considerado o melhor governador do país?”. Considerado
pelo autor da pergunta, claro. Enquanto Quércia tentava disfarçar o
entusiasmo provocado pelo tipo de provocação com que sonha todo
entrevistado, rabisquei a mensagem ao meu amigo Escosteguy: “Certas
demonstrações de covardia exigem mais coragem do que qualquer daqueles
atos de bravura em combate que rendem condecoração. É o que acaba de
mostrar nosso colega”. É isso que Nunes Marques deveria ter dito na
réplica a um provocador patológico. Porque é preciso muita coragem para
fazer o que Gilmar anda fazendo.
As
demonstrações de pusilanimidade que vem colecionando são tantas e tão
temerárias que podem acabar por transformá-lo no mais condecorado herói
da guerra contra o combate à corrupção. Só alguém sem medo de ser
covarde se atreveria a insultar com tamanha desenvoltura a mais eficaz
operação anticorrupção da história. “A Lava Jato é a maior mentira da
história do Judiciário“, deu agora de recitar o Juiz dos Juízes. Só um
pusilânime intimorato se atreveria a comandar a ofensiva destinada a
transformar um magistrado exemplarmente honesto num julgador parcial, e
promover a perseguido político um caso de polícia que desonrou a
Presidência da República.
O
gerentão da Segunda Turma do Pretório Excelso enxerga em qualquer
votação um jogo em que só é crime perder. Fora esse pecado mortal, vale
tudo: cotovelada no queixo, carrinho por trás, joelhaço no fígado — nada
merece punição. Foi por isso que o camisa 10 do Timão da Toga, que vai
virar decano com a aposentadoria de Marco Aurélio, encerrou a discussão
com o ministro Luís Roberto Barroso berrando o mantra de torcida
organizada: “Perdeu! Perdeu!“. O que Barroso perdeu foi a chance de
desmoralizar o oponente com a lembrança de uma verdade endossada pelo
olhar sem luz de Gilmar Mendes: melhor perder uma causa do que perder
para sempre a vergonha.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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