À medida que construções golpistas vão dando certo, as construtoras vão repetindo e as cidades vão ficando cada vez mais áridas e feias. Bruna Frascolla via Gazeta do Povo:
Um
dos aprendizados do século XX, se não o principal, se traduz numa
espécie de fé na sociedade. A sabedoria está difusa por todo o tecido
social; e, em vez de delegarmos a um gênio da economia a determinação do
preço do ovo, mais vale confiar no bom-senso do analfabeto que dirige
uma kombi velha cheia de ovos. Aquilo que vale para a economia, porém,
parece bem distante da estética.
Viralizou
nas redes sociais o gracioso e arejado casarão paulistano onde
funcionava um bar tradicional, que foi “reformado”. A reforma consistiu
em transformá-lo num caixote cinzento coberto de azulejos, com o janelão
principal transformado em parede e os demais convertidos em
quadradinhos miúdos. Diante disso, ouvia-se a pergunta: “Mas como esse
casarão não era tombado?” Aos meus botões, eu perguntava o que vai na
cabeça de uma pessoa que não só achou uma boa ideia a transformação como
gastou dinheiro com aquilo. Onde vive? O que come?
Que tombar ajuda, ajuda
Depois
de ver as escabrosas imagens do ex-casarão, saio com um sorriso de
orelha a orelha. A caminho da padaria, passo por uma porção de casinhas e
casarões para comprar pão. A própria padaria fica num casarão no estilo
do que foi destruído em São Paulo: com pé direito altíssimo e mais um
andar em cima. Desde o Brasil colonial, era costume dos comerciantes
morar em cima da loja. Além disso, descobri nesta cidade (Cachoeira) que
casarões podem renascer das cinzas. Aquilo que era ruína, ao ser
comprado, logo passa por uma reforma que o reintegra à paisagem.
Seriam
os cachoeiranos especialmente dotados de senso estético e índole de
preservação? Talvez até sejam, mas a razão de esta cidade ser assim, bem
preservada, é ser toda ela tombada. Os moradores têm uma relação de
amor e ódio com o “Patrimônio” (que é como chamam o IPHAN). Quem ouvir
as queixas sem saber do que se trata achará que esse tal de Patrimônio é
um senhor bipolar, que cada hora diz uma coisa e volta e meia dá uma de
maluco. Por outro lado, a comparação com as vizinhas Santo Amaro e São
Félix faz os nativos se gabarem do tombamento da cidade. Às vezes, eles
reclamam que o Patrimônio é leniente demais ao permitir tal coisa. Ouvi o
mesmo lamento de um fotógrafo e de um eletricista: a substituição do
calçamento de cabeça-de-nego pelo de paralelepípedos.
Cabeça-de-nego
é o calçamento do Pelourinho, composto por pedras desiguais de formatos
aleatórios, com o tamanho médio menor que uma mão humana. Mas foi o
eletricista, bairrista empedernido, que me fez enfim compreender a
sensação de aridez em Santo Amaro: asfalto. “Em Santo Amaro eles são
evoluídos, botaram asfalto”, diz com desdém. “Aqui a cidade é
conservadora”. Que um eletricista e um fotógrafo tenham uma estética da
mesma índole mostra que há muito fatores além da educação formal em
jogo.
De
fato, as cidades vizinhas não-tombadas são bem menos bonitas do que a
cidade tombada. E mais: o fato de a cidade ser tombada implica que os
casarões são mais bem conservados do que os de Salvador, que costumam
tombar no chão depois de serem tombados. Como o local fica livre para
qualquer construção normal depois da queda do imóvel, há incentivo para
deixá-lo cair. Quando a cidade é tombada, não se pode construir nada que
a descaracterize, então é factível comprar um imóvel em ruínas e
restaurá-lo.
De
fato, o tombamento significa uma considerável redução de liberdade. O
que, no frigir dos ovos, significa que o aumento de liberdade tem, na
arquitetura, um efeito oposto ao da economia.
A
arquitetura e economia são de naturezas opostas: uma é composta por
partes duradouras e estáveis, outra é composta por partes efêmeras e
voláteis. Se o analfabeto na kombi resolvesse vender trinta ovos por mil
reais, ou por cinquenta centavos, seu negócio desapareceria num pulo e
seus concorrentes manteriam a sua cidade bem abastecida de ovos. Todo
agente, no mercado, pode desaparecer a qualquer momento; sua existência é
ainda mais efêmera do que a vida humana.
Por
outro lado, uma edificação é uma edificação e estará lá de pé por
gerações humanas, a menos que alguém arque com os custos de derrubá-la.
Feiura não causa queda de prédio, beleza não o torna mais resistente. A
beleza do casarão era indiferente à opinião e aos olhos dos vizinhos,
assim como é agora a sua feiura. O bem e o mal, em arquitetura, são
muito mais duradouros.
O modernismo é antiutilitário
Naturalmente,
o IPHAN é mais novo do que Cachoeira, e é de se presumir que, se
tivesse sido criado em 2020, não haveria muito mais beleza na cidade do
que em Santo Amaro. Cachoeira foi tombada em 1971, e é de se presumir
que Santo Amaro fosse quase tão bonita quanto, à época. (Ter um rio
grande e piscoso embeleza a paisagem, coisa que Santo Amaro não tem).
Logo, o processo de enfeiamento surgiu na região depois dessa data.
Todo
mundo que não tem diploma de arquitetura acha o modernismo feio. Até
este fim de semana, eu achava que era efeito de uma mudança dos cursos
de arquitetura. Mas assisti a Elomar falando de arquitetura e ele acha
Brasília uma coisa linda, embora a reprove ao máximo. Elomar é um músico
que cria bodes no sertão, tem mais de oitenta anos, é formado em
arquitetura pela UFBa e exerceu a profissão. Segundo conta, a
arquitetura ensinada então era vitruviana, pautada por firmitas,
utilitas e venusta, ou seja, a parte da engenharia (firmeza), a
utilidade ou conforto, e, por último, a beleza. Seus professores
criticavam em uníssono Brasília por violar esse princípio, sacrificando a
utilitas à venusta. Brasília foi muito custosa, esbanjou muito dinheiro
e demandou material de construção enviado de avião. Aquela imensidão de
gramados verdes é bela – mas sem funcionalidade alguma. Se ele morasse
lá, levava os bodes para o gramado.
Como
eu não sou arquiteta, eu acho aquelas parafernálias de concreto, aço e
vidro feias. Mas algo que nunca tinha me ocorrido é que elas são
supérfluas e, a despeito de o modernista jurar que a forma está sempre
pautada pela função, o que vemos é o contrário: Lúcio Costa e Niemeyer
fizeram um croqui simbólico da atividade política, em que uma cumbuca
virada para cima (a Câmara) recebia as demandas do povo e outra, voltada
para baixo (o Senado), as retinha para ponderar. Uma vez feito esse
croqui idealista, o engenheiro que desses seus pulos para fazer algo que
ficasse de pé. E a comodidade? Duvido que algum arquiteto queira morar
ou trabalhar num prédio sem janela, e agora fiquei curiosa de pesquisar
como aquele negócio era ventilado nos anos 1950.
Repetição irrefletida
Como
os prédios de hoje não são todos projetados por figurões da
arquitetura, nem são eles que fazem as reformas desastradas, suponhamos
então que a arquitetura moderna deseducou a sociedade ao fazê-la achar
que prédio se constrói ou reforma segundo a moda, sem se aventar mais
qualquer coisa relativa ao conforto.
O
exemplo mais evidente disso, pra mim, é a moda de rebaixar teto. Em
algum lugar frio da Europa, arquitetos acharam que teto baixo é bonito.
Então os arquitetos frívolos (e as madames igualmente frívolas que os
contratam) resolveram sair rebaixando teto em cidades tropicais
brasileiras. Enquanto isso, os prédios do Brasil colonial ou imperial
não poupam material para fazer um teto bem lá no alto, porque
antigamente era bem óbvio para todos que teto alto significa menos
calor.
Na
mesma UFBa em que Elomar estudou, prédios da década de 1970, feitos por
arquitetos já modernistas, são bastante confortáveis e arejados (embora
feios). Usavam e abusavam de cobogós, uma invenção pernambucana de
cerca de 100 anos que concilia sombra e ventilação. Se você abrir uma
janela para ventilar, o sol entrará para cozinhar. Se você tapar a
parede, ela ficará sombreada, mas sem vento. O cobogó é um tijolo vazado
que permite a entrada de ar, quebra a luz e, em tempos de alta
criminalidade, tem a vantagem extra de não poder ser arrombado.
Pois
bem: estudei em prédios com cobogó e dei aula em prédios com vidro. Por
alguma razão, os arquitetos decidiram que cobogó era demodé e vidro era
o máximo, então, nas reformas trocaram cobogós por placas de vidro e
basculantes. Uma sala ficou inutilizável num período da manhã, porque o
sol ia direto na minha cara. Fui chorar as pitangas com o vigia, que
também tinha seus motivos para lastimar: agora o basculante é fonte de
preocupação, porque dá para o mato e eles temem que um ladrão entre para
roubar o projetor.
Essas
coisas que fazem os prédios mais quentes são remediadas com aparelhos
de ar-condicionado. Criar uma caixinha claustrofóbica de concreto pode
ser, em áreas frias da Europa, uma solução econômica para pobres.
Gasta-se pouco com material e ocupa-se pouco espaço. Se alguém pode ser
feliz num ambiente assim, são outros quinhentos. Mas é de admirar que as
classes média e alta brasileiras comprem o mesmo tipo de habitação e
ainda tomem o ar-condicionado como índice de chiqueza, em vez de
incompetência arquitetônica.
No
fim das contas, o que importa é vender prédio. Comprar um apartamento
pode ser como cair num golpe. Por alguma razão, as pessoas deram pra
achar que a “área comum” (piscina e academia) valoriza o prédio, mesmo
que não usem nunca. Como isso encarece o condomínio, as construtoras
fazem um verdadeiro pombal humano de concreto (com o espaço planejado do
ar-condicionado) para maximizar os pagantes de condomínio e diminuir o
seu valor. O comprador, imprudente, termina gastando com ar-condicionado
o tempo inteiro, deprimido dentro de um caixote, com umas áreas de
lazer xexelentas que ele agora sequer pode visitar porque o síndico
fechou na pandemia.
Prédio
é duradouro. Como ninguém vai derrubar um troço desse, resta anunciar e
torcer para que algum comprador caia no golpe e tome a sua sina. À
medida que construções golpistas vão dando certo, as construtoras vão
repetindo e as cidades vão ficando cada vez mais áridas e feias.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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