Estamos diante de um problema político sério que a direita evangélica traz para a democracia. Artigo do embaixador Rubens Barbosa para o Estadão:
Estamos
vivendo tempos estranhos. A sociedade está dividida e polarizada,
anestesiada e paralisada, até pelas dificuldades decorrentes da
pandemia. A perplexidade aumenta na medida em que, entre muitos outros
exemplos, se verifica a maneira como a grave crise do combate à
covid-19, fora de controle, está sendo conduzida; pela ameaça de um
enfrentamento fratricida pela facilitação da venda e do porte de armas e
munições; pela inexplicada crise militar com a demissão da cúpula da
Defesa; pelo desmonte do combate à corrupção; pela crescente influência
das milícias e do tráfico de drogas; pela chocante visibilidade da
desigualdade social; pela falta de perspectivas e de uma visão de futuro
para o País.
A
tudo isso se junta agora a surrealista discussão sobre atividades
religiosas coletivas em templos e igrejas durante a pandemia. As
apresentações terrivelmente evangélicas feitas no STF pelo
advogado-geral da União e pelos advogados que defendiam a abertura dos
templos e igrejas trouxeram à tona, mais uma vez, a questão da laicidade
do Estado brasileiro. Até o presidente reforçou a defesa de cultos e
missas presenciais como um direito inerente a maioria, ignorando as
ameaças à vida e a Constituição.
Estado
é laico é o que promove oficialmente a separação entre Estado e
religião. A partir dessa separação, o Estado não deveria permitir a
interferência de correntes religiosas em assuntos estatais, nem
privilegiar uma ou algumas religiões sobre as demais. Essa situação
existe no Brasil desde a Proclamação da República, em decorrência do
disposto na Constituição de 1891, em que se explicita a rejeição da
união entre o poder civil e o poder religioso, pondo fim ao regime do
padroado, que concedia privilégios à Igreja Católica e no qual se
confundiam o Estado e a Igreja. No laicismo, cabe ao Estado garantir a
liberdade e a igualdade de todos, independentemente dos valores morais e
religiosos.
Mesmo
com maioria até aqui católica, o Brasil é oficialmente um Estado laico,
neutro no campo religioso, não apoiando nem discriminando nenhuma
religião. Apesar de citar Deus no preâmbulo, a Constituição federal é
clara ao vedar à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,
embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes
relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a
colaboração de interesse público. Dessa forma, a liberdade religiosa na
vida privada é assegurada, desde que separada do Estado. É inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício
dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos
locais de culto e a suas liturgias.
Na
minha visão, a separação Igreja-Estado foi um avanço e está na base da
formação dos Estados modernos. Com a República, o Estado brasileiro
tornou-se um Estado moderno, no qual não se busca a satisfação
espiritual, mas a expansão dos direitos humanos e das liberdades
individuais.
Ao
contrário do que se ouviu nos últimos dias, o Estado brasileiro não se
pode manifestar religiosamente. Como já foi dito por ministro do STF,
“os dogmas de fé não podem determinar o conteúdo dos atos estatais” e
“as concepções morais religiosas – unânimes, majoritárias ou
minoritárias – não podem guiar as decisões de Estado, devendo, portanto,
se limitar às esferas privadas”.
Nos
últimos anos, o que se viu foi o contrário. A ameaça à Constituição não
é uma preocupação. Embora não se constituindo em movimento único, pois
há divergências entre elas, a influência das igrejas evangélicas, em
especial a Universal, aumentou significativamente e ganhou força
política real.
Sua
eficiente arrecadação entre fiéis seduzidos e sua capacidade televisiva
e radiofônica, além da mídia impressa e de partidos políticos, estão a
serviço de um projeto político. Não é segredo para ninguém que os
evangélicos buscam alcançar, sem intermediários, o poder máximo da
República, depois de eleger prefeitos, governadores, senadores,
deputados e ministros das Cortes de Justiça. A Igreja Universal ataca a
Igreja Católica e exerce uma ação voltada para assumir a hegemonia do
Estado.
Não
se pode negar a competência e a eficiência da atuação da militância
evangélica, instalada agora em diferentes órgãos públicos federais, na
defesa de sua agenda de costumes, social, financeira e mesmo política,
como estamos vendo nas ações do Ministério da Mulher, Família e Direitos
Humanos e na política externa, nos últimos dois anos.
Pela
primeira vez na História do Brasil, as igrejas evangélicas atuam de
maneira coordenada para chegar ao comando do poder político. Em política
não existe vazio. Se alguns setores ganham espaço, outros perdem. É
surpreendente que representantes da alta hierarquia da Igreja Católica,
em especial, não se tenham manifestado até aqui em defesa do Estado
laico e da separação clara do Estado e da religião.
Estamos
diante de um problema político sério que a direita evangélica traz para
a democracia e afeta liberais, conservadores e progressistas. Trata-se,
na realidade, de um problema de dominação por uma minoria e de reação
contra o pluralismo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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