Creio apenas que aqui fomos muito longe em nossa experiência infernal. Fernando Gabeira via O Globo:
Não
consigo deixar de quebrar a cabeça para explicar nosso fracasso diante
da pandemia. Pareço aquele personagem do romance de Vargas Llosa
“Conversa na catedral”. Ele se debate com a pergunta: “Em que momento o
Peru se fodeu?”.
Cada semana enveredo por uma trilha nova, sem saber direito onde dará essa patética aventura.
Alguns
textos estimulam minha busca. Um deles é da economista Mariana
Mazzucato, que, ao falar da importância de uma ação nacional coordenada,
usa como exemplo o esforço americano para colocar o homem na Lua.
O
livro dela chama-se “Missão economia” e pretende ser um guia para mudar
o capitalismo. No prefácio, ela comenta a experiência vitoriosa do
Vietnã contra a Covid-19, baseada na capacidade de unir todas as
energias nacionais numa só direção.
Por
minha conta, dei um balanço também em alguns momentos de êxito dos
britânicos na pandemia. Um deles foi a capacidade de articular a energia
e a criatividade no processo de conseguir vacinas e realizar a
vacinação em massa. Outro foi o êxito em evitar, no auge da crise
sanitária, que houvesse um colapso no sistema hospitalar.
Ambos
os processos de vacinação e gestão de hospitais no Reino Unido foram
capitaneados por mulheres. Mas envolveram um esforço mais amplo. Daí
minha interrogação: sera que tanto o Vietnã como o Reino Unido não se
aproveitaram da memória das guerras que viveram e encontraram mais
facilidade para um esforço nacional?
Por
meio de outro texto, tentei fazer o caminho oposto: examinar o fracasso
de alguns países, como os Estados Unidos e o Brasil, que perderam muito
mais gente na pandemia.
Refiro-me
a um artigo publicado no ultimo número da “Foreign Affairs”, com o
título de “O poder partido, como superar o tribalismo”, de Reuben E.
Brigety. De forma simplificada, uma das características do tribalismo é o
patrulhamento constante entre os membros de uma tribo, o que evita a
possibilidade de cooperar com um adversário para o bem comum.
A
superação do tribalismo pode se encontrar na coragem dos líderes, como
nos processos da África do Sul e da Irlanda. Ou então na ajuda de
entidades mediadoras. Mas tanto Trump quanto Bolsonaro jamais levariam
em conta esse aspecto, precisamente porque sobrevivem na divisão.
Nem
um nem outro jamais pensou em saída nacional e solidária, simplesmente
porque isso implica dissolver diferenças secundárias em nome da tarefa
de salvar vidas.
Já
havia mencionado em alguns artigos como essa polarização intensa nos
torna incapazes de certas conquistas. No caso americano, além de reduzir
seu potencial, abre um flanco para a exploração dos inimigos externos.
No
exemplo brasileiro, esse fator inimigo externo não tem tanto peso. São
tantas as agressões entre nós, tantos insultos à razão e à lógica
elementar, que um inimigo externo descansaria na certeza de que
fatalmente nos autodestruiremos.
Uma
das mais delicadas tarefas de Joe Biden é superar o tribalismo na
política americana. E creio que a experiência de nosso fracasso na luta
contra a pandemia aponta para a mesma direção no futuro: recriar as
condições para que, em determinados momentos, possamos agir como um só
país, com energia concentrada para derrotar um inimigo comum, seja ele
um vírus, um desastre ambiental ou um grande sofrimento popular.
Quando
o radicalismo de Bolsonaro e seus adeptos for superado, creio que, de
todos os temas com que trabalho, a proteção ao meio ambiente e a
sustentabilidade, ao lado da luta por melhorias reais da condição de
vida, podem ser a base de um novo pacto. Ecologia e responsabilidade
social.
Não creio que isso nos levaria a um mundo totalmente pacificado, muito menos ao paraíso.
Creio
apenas que aqui fomos muito longe em nossa experiência infernal. Não me
pergunto apenas quando é que o Brasil se fodeu, mas também por que se
fodeu tanto.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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