BLOG ORLANDO TAMBOSI
Transformar a misoginia em crime de ódio seria um desastre para a autonomia feminina. Ella Whelan, da Spiked, para a revista Oeste:
A
misoginia é uma “praga constante” da sociedade, de acordo com a BBC.
Praga é uma palavra interessante — a ideia de que o ódio em relação às
mulheres é um fungo que está consumindo os homens por dentro,
gradualmente tomando conta deles e levando-os a tomar decisões
desastrosas, parece ter se tornado lugar-comum agora. Os homens estão
intrinsecamente cheios de ódios pelas mulheres, é o que nos dizem o
tempo todo. E a única esperança é submetê-los a um treinamento para
controlar esse ódio, e aprovar leis que lidem com a praga quando ela
chega à superfície. O governo do Reino Unido anunciou que a polícia
transformará a misoginia em crime de ódio — será solicitado que as
forças policiais identifiquem os atos de violência motivados por
“hostilidade com base no sexo”.
Assim
como o assassinato de George Floyd, a morte supostamente brutal de
Sarah Everard teve enormes ramificações políticas. É compreensível que
tantas mulheres tenham sentido calafrios diante das notícias de que ela
desapareceu — todas nós temos medo de acabar como Sarah. Quando saímos à
noite, as mulheres ouvem desde cedo que devem ficar atentas a situação
de perigo. Apesar de ser estatisticamente muito improvável que uma
mulher seja sequestrada e assassinada, muitas de nós continuam não
ouvindo música alta em ruas desertas e levando os sapatos de salto na
bolsa para o caso de ser preciso correr.
De
quem é a culpa por esse medo irracional? Talvez seja dos nossos pais,
que nos alertaram sobre os tipos de bicho-papão da vida real à espreita
nas esquinas. Talvez seja porque muitas de nós tenham tido interações
desconfortáveis com homens, às vezes bêbados, às vezes não, forçando os
limites quando saímos sozinhas. Ou talvez seja porque expressar e ceder
ao medo tenha se tornado uma espécie de virtude quando se trata da
política das mulheres. Em vez de incutir confiança na ocupação do espaço
público pelas mulheres das 3 da tarde às 3 da madrugada, muitas pessoas
que dizem querer dar fim à “praga” da misoginia hoje afirmam que a
única forma de as mulheres estarem em segurança seria cedendo aos seus
medos.
Em
1977, em reação a uma série de agressões, estupros e assassinatos de
mulheres pelo Estripador de Yorkshire (Peter Sutcliffe), as mulheres
começaram a tomar as ruas em Leeds, e depois do resto do país, para
“reivindicar a noite”. Essa era uma época em que os policiais estavam
culpando as vítimas de Sutcliffe por se colocarem em perigo, pela
maneira como se vestiam ou como se comportavam, e dizendo a todas as
mulheres para ficar dentro de casa. Essas mulheres corajosas, marchando
na escuridão, exigiram ser libertadas do medo.
A
reação ao assassinato de Everard tem sido marcadamente diferente. Em
vez de reafirmar que as mulheres devem ser livres para se envolver na
vida pública sem medo da violência dos homens nem das restrições das
autoridades, muitas parecem querer leis baseadas na ideia de que as
mulheres devem viver em um estado de terror perpétuo. É isso que
transformar a misoginia em crime de ódio sugere — que as mulheres vivem
(e devem viver) com medo do ódio dos homens.
Depois
do assassinato de Everard, as exigências em relação a novos crimes
estão se acumulando. Houve pedidos para tornar o assédio nas ruas um
crime. Algumas militantes querem fortalecer a Clare’s Law, que
facilitaria às mulheres a pesquisa de dados a respeito de potenciais
parceiros no banco de dados da polícia. Houve quem sugerisse toque de
recolher para homens.
E,
em reação às exigências de manifestantes e ativistas de “aumentar a
segurança das mulheres”, o governo britânico anunciou fundos extras para
alocar agentes policiais infiltrados em pubs e casas noturnas, bem como
em ruas adjacentes, para ficarem de olho nas mulheres que possam estar
em apuros. Casas noturnas serão transformadas em creches — nenhuma
mulher vai poder escapar para a área de fumantes para alguns beijos
bêbados sem o olhar atento de um policial à paisana.
Na
última década, quase 1.500 mulheres foram mortas por homens — na
maioria parceiros ou ex-parceiros em casa e um punhado de estranhos na
rua. No decorrer de sua vida, quase toda mulher vai ter algum tipo de
experiência negativa com homens — sejam comentários sexistas, seja algum
constrangimento, ou pior. Aquilo em que as pessoas que clamam por mais
vigilância da vida privada das mulheres — desde intervenção policial por
meio de leis relacionadas a crimes de ódio até acompanhamento literal
em noitadas — estão errando é misturar os crimes mais hediondos com más
experiências. Fingir que as mulheres vivem sob uma “epidemia” ou uma
“praga” de misoginia não faz nada pela liberdade delas. E com certeza
não impede estupros ou assassinatos. Aqueles que cometem esses crimes o
fazem com plena consciência do que suas ações significam — poetizar
sobre a necessidade de educar os homens não vai ajudar.
Em
vez disso, instituir esse tipo de legislação cimenta a ideia de que as
mulheres de fato são mais vulneráveis, mais fracas, que têm mais
necessidade de proteção do que os homens — que são naturalmente mais
livres, mais destemidos e mais independentes. Isso pega nossos piores
pesadelos de acabar como Everard e os apresenta como realidade, em vez
de afirmar o fato de que as mulheres deveriam se recusar a mudar seu
comportamento ou sua ideia de si mesmas diante das ameaças de assassinos
ou sexistas idiotas.
O
motivo por que alguns homens se sentem capazes de causar dano ou
ameaçar mulheres é por nos ver como menos merecedoras da liberdade e da
autonomia de que eles gozam. Ao sugerirmos que os homens odeiam as
mulheres, que todas as mulheres correm perigo por causa dos homens, nós
cedemos a preconceitos e fantasias daqueles poucos que querem nos fazer
mal. Também estamos condenando metade da população a sucumbir a um tipo
de determinismo imaginado — é ofensivo e é errado sugerir que todos os
homens de alguma forma são coniventes com as ações de uns poucos
abusadores. Transformar a misoginia em crime de ódio registra na lei que
as mulheres não conseguem lidar com a vida pública sem o olhar atento
do Estado. Isso não é uma política da liberdade. É uma política do medo.
Ella Whelan é colunista da Spiked e autora do livro What Women Want: Fun, Freedom and an End to Feminism.

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