Por
um lapso, quem sabe, Gilmar Mendes esqueceu-se de estender a suspeição
aos magistrados que convalidaram as decisões de Sergio Moro na segunda e
na terceira instâncias. Bolívar Lamounier para o Estadão:
“Quem está preso pode ser solto,
quem está solto pode ser preso”.
Ditado mineiro
Desde
o dia, milênios atrás, em que os seres humanos conseguiram concatenar
duas ideias, eles entenderam que a vida em sociedade é impossível sem um
conjunto de normas às quais a maioria esteja disposta a obedecer.
Séculos
mais tarde perceberam que normas convencionais, surgidas com a lenta
evolução dos costumes, não seriam suficientes. A vida social exigia
normas propriamente jurídicas, criadas sempre que necessário a fim de
prover respostas para os desafios de cada época. De fato, o Direito
distingue-se da convenção, desde logo, por implicar sanções – vale
dizer, o recurso à força – contra eventuais infratores. E o recurso à
força implicava a formação de um grupo de profissionais especializado e
dotado de legitimidade para aplicar as leis.
Dá-se,
entretanto, que o conteúdo do Direito não é evidente por si mesmo. Os
profissionais responsáveis por sua aplicação podem e de certa forma são
forçados a “interpretá-lo”, diria mesmo a “declará-lo”. Isso ocorre em
inúmeras ocasiões, seja pela complexidade intrínseca das normas ou do
meio social circundante, seja, e não menos importante, pela influência
das ideologias ou interesses do referido grupo de profissionais.
A
esta altura, peço licença para deixar de lado as abstrações e me
concentrar numa ocasião em que o conteúdo da lei foi “declarado” de uma
forma até pitoresca. Todos se lembram da sessão do Senado, presidida por
Ricardo Lewandowski, à época presidente do Supremo Tribunal Federal,
que votou o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Segundo o artigo
52, inciso 14, parágrafo único, da Constituição da República, a
autoridade afastada torna-se inelegível por oito anos e inabilitada para
o exercício de qualquer função pública. Esse, contudo, não foi o
entendimento do ministro Lewandowski. Sua Excelência e o não menos
excelente senador Renan Calheiros alvitraram um sutil expediente para
desmembrar o “indesmembrável” parágrafo único, consumando, assim, uma
dupla agressão: à Constituição e à língua portuguesa.
Vejamos
a Constituição brasileira de 1988. Nos processos referentes ao triplex
no Guarujá e ao sítio em Atibaia, Lula foi condenado pelo juiz Sérgio
Moro na primeira instância, pelo TRF-4 (com sede em Porto Alegre) e pelo
STJ (sediado em Brasília), ou seja, até a terceira instância. Mas
decorridos cinco anos, o proverbialmente cuidadoso ministro Edson Fachin
atinou com um erro de origem – o foro apropriado haveria de ser
Brasília, e não Curitiba – com o que as condenações ficaram suspensas,
devendo todo o processo voltar à estaca zero.
Lula
é o caso mais cintilante, mas não se requer muita argúcia para perceber
que o “trânsito em julgado” reduz o artigo 37 (que estatui a probidade
como princípio fundamental da administração pública) e seus incisos a pó
de traque. Esse exemplo deveria bastar para substanciar o diagnóstico
que venho de defender, qual seja, o de que o Brasil vive uma anarquia
jurídica. Quem “declara” o que é a Constituição? O STF, obviamente,
Poder não eletivo, ab-solutus, não atingível por nenhum controle, salvo
na remota hipótese de o Senado remover algum ministro por meio do
instituto do impeachment.
Hans
Kelsen, não obstante o radical formalismo de seu pensamento, estipulou
também que a ideia de um sistema jurídico implica não apenas a coerência
interna e uma ascensão lógica entre as normas que o integram, mas
também um certo grau de “eficácia” do conjunto.
O
“trânsito em julgado” – norma concebida no nível mais alto, na verdade
uma “cláusula pétrea”, que só pode ser alterada por outro Poder
constituinte originário – satisfaz o critério da eficácia? Sim,
satisfaz, às mil maravilhas, mas, infelizmente, no sentido mais perverso
que se possa imaginar. Parece ter sido inventado com o fim específico
de impedir a condenação de criminosos de colarinho branco, vale dizer,
daqueles que ocupam posições elevadas na escala do poder político ou
detêm recursos financeiros suficientes para contratar advogados de
padrão Kakay. Os três PPPs (pobres, pretos e putas) que carecem de tais
recursos ficam amontoados nos cadeiões que há por aí, evidenciando que o
Brasil é um país com duas justiças.
Imediatamente
após a decisão do ministro Fachin, o ministro Gilmar Mendes pautou e
fez aprovar na segunda turma a suspeição do juiz Sergio Moro, em sessão
que contou até mesmo com a inusitada posição da ministra Cármen Lúcia,
que inverteu, sem fundamentação, seu voto de 2016, violando, pois, a
legislação existente sobre a matéria. Por um lapso, quem sabe, Gilmar
Mendes esqueceu-se de estender a suspeição aos magistrados que
convalidaram as decisões de Sergio Moro na segunda e na terceira
instâncias.
Uma
descrição mais completa das posições que estão transformando numa
completa anarquia o resto de sistema jurídico que ainda nos rege
exigiria uma vista d’olhos sobre os primeiros 27 meses de Jair Bolsonaro
na Presidência da República, mas infelizmente não disponho de espaço
para tanto.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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