Liechtenstein, Hong Kong, Singapura, Prospera Village e Sandy Springs demonstram que gestão governamental descentralizada é o remédio para as burocráticas democracias modernas. Edilson Salgueiro para a revista Oeste:
Uma
das virtudes da espécie humana é a capacidade de organizar-se em
grupos, com linguagem e princípios comuns, para resistir à agressão de
marginais. Essa união entre indivíduos com valores equivalentes, além de
permitir a construção de um ambiente coeso e pacífico, impede as
tentativas de opressão de facções tirânicas. Não fosse esse potencial
aglutinador, o destino de homens e mulheres autodeterminados estaria
fadado à extinção. Grosso modo, esse é o âmago da abordagem do filósofo
contratualista Thomas Hobbes em seu Leviatã.
Compreendidos
o instinto gregário do homem e a existência de facínoras dispostos a
aniquilar seres humanos ordeiros, é razoável admitir a ideia de que a
criação de uma entidade centralizada, que de forma exclusiva e
coercitiva forneça proteção à vida, à integridade física e à propriedade
de todos, possa ser considerada uma alternativa de organização social.
Essa entidade, fundada durante o período Mesolítico, caracterizado por
ser a transição de uma sociedade nômade para uma sociedade sedentária,
permanece ainda hoje estabelecida nas regiões mais desenvolvidas do
mundo. Convém chamá-la de Estado.
Não
obstante seja válida a ideia de fundar uma instituição que detenha o
monopólio da força, sobretudo em nome da autopreservação, a experiência
real demonstra que o direito exclusivo do uso da violência pelo Estado é
comumente dirigido contra o próprio povo, e este deve tolerar, sem
recurso à autodefesa, parte de seus bens e de sua renda sendo espoliada e
redistribuída indiscriminadamente. O efeito prático de delegar poderes
ilimitados a uma entidade centralizada é, portanto, o exato oposto do
que previra Hobbes.
Como
observa Titus Gebel em Free Private Cities, o monopólio estatal da
força se torna um instrumento de parcialidade politicamente motivada.
Então, o conceito original de sua existência — proteção à vida, à
integridade física e à propriedade de todos — implode como prédios
deteriorados. Por isso, é contraproducente dar ao Estado um poder que vá
além de garantir a segurança interna e externa de um território —
embora essa lição seja constantemente ignorada, visto que a burocracia
governamental se torna cada vez mais complexa em diversos países, mas
não em todos.
O exemplo de Liechtenstein
O
pequeno principado de Liechtenstein é um exemplo de modelo alternativo
de gestão. Em 2003, a Constituição do país foi largamente alterada, a
partir da observação do príncipe Hans-Adam II, que constatou a tendência
inerente das democracias a caminhar em direção a governos de um único
partido, bem como o interesse egoísta da classe política em preservar
seus privilégios. Por conseguinte, foram instaladas duas válvulas de
segurança que não são sujeitas à influência de burocratas: (1) o
príncipe tem o direito de vetar resultados de referendos; e (2) todos os
municípios têm direito a secessão. Nesse caso, o abuso do direito ao
veto pelo príncipe pode culminar na abolição da monarquia.
Liechtenstein
é o único país que permite aos seus municípios se separarem,
concedendo-lhes o direito inalienável de autodeterminação. Em sua obra O
Estado do Terceiro Milênio, Adam II reconheceu que essa medida
melhoraria a qualidade das ações do governo por meio da concorrência, da
mesma maneira como ocorre no mercado de produtos e serviços. Segundo
ele, os Estados competiriam uns com os outros, a fim de oferecer aos
seus “clientes” o melhor serviço possível com o menor preço. O resultado
desse novo modelo de gestão estatal reflete-se na realidade: o
principado tem um dos maiores PIBs per capita e salários médios do
mundo. Ao contrário da crença popular, o setor financeiro contribui com
apenas 24% do PIB de Liechtenstein e somente 16% da força de trabalho.
Hong Kong, um oásis no território chinês
Hong
Kong é outro exemplo de como uma cidade-Estado pode evoluir de simples
ideia libertária para potência de prosperidade. A ex-colônia, localizada
no sudeste da China, esteve sob administração britânica de 1843 a 1997,
razão por que os pilares das tradições inglesas podem ser observados na
construção do hoje território autônomo. Diferentemente dos vizinhos
chineses e de parte da Europa Ocidental, que optaram pelo protecionismo e
keynesianismo como política econômica, Hong Kong permitiu o livre
mercado, estabeleceu a cobrança de impostos baixos e não acumulou
dívidas — pelo contrário, fez uma reserva equivalente a um orçamento
anual. Essas medidas resultaram em altas taxas de crescimento por
décadas.
John
Cowperthwaite, ex-secretário de Finanças de Hong Kong, falecido em
2006, atribuiu o eminente progresso da ilha à doutrina do Não
Intervencionismo Positivo, segundo a qual o governo só interfere na
economia em casos excepcionais e cria a estrutura legal e
infraestrutural para facilitar o desenvolvimento baseado na
livre-iniciativa. “A longo prazo, o conjunto de decisões de empresários
individuais, exercendo julgamento individual em uma economia livre,
mesmo que muitas vezes equivocado, tende a causar menos danos do que as
decisões centralizadas de um governo; e o dano provavelmente será
neutralizado mais rápido.”
Desde
sua devolução à China, em 1997, Hong Kong tem sido uma zona
administrativa especial liderada por um executivo-chefe, mantendo uma
economia de livre mercado, suas próprias leis privadas baseadas na
common law inglesa, suas próprias autoridades, sua própria moeda e
autonomia interna. Sob o princípio “Um País, Dois Sistemas”, acordado
entre China e Reino Unido em 1984, os hong-kongueses manterão sua
independência política e econômica por, pelo menos, 50 anos após a
aquisição. Teoricamente, apenas política externa e questões de defesa
territorial são incumbências de Pequim — mas Xi Jinping quer mais.
Conforme apontou o analista britânico Tim Black, em artigo publicado na Revista Oeste,
mais de 10 mil dos envolvidos em protestos contra a crescente usurpação
do Partido Comunista Chinês em Hong Kong foram presos. “A Lei de
Segurança Nacional, que o PCC diz ter imposto à ilha semiautônoma para
restaurar a ‘estabilidade’, estendeu o poder do Estado para reprimir a
dissidência, definindo de forma ampla terrorismo, subversão, secessão e
conluio com potências estrangeiras”, explicou.
O
Conselho Legislativo eleito na cidade-Estado, outrora independente, foi
neutralizado após Pequim ter aprovado uma resolução que permite ao
governo local afastar do cargo, sem recorrer a tribunais, políticos que
se recusem a reconhecer a soberania chinesa. Em novembro do ano passado,
quatro de seus 19 legisladores pró-democracia foram desqualificados, o
que levou os 15 restantes, por princípio, a renunciar. “Pela primeira
vez em sua História, a legislatura carece de qualquer oposição aos
ditames do PCC”, assevera Tim Black. Em 29 de março último, a ditadura
chinesa reduziu ainda mais o número de representantes de Hong Kong na
Assembleia Popular Nacional. Infelizmente, o bom modelo de gestão poderá
ruir — mas as lições de autonomia e prosperidade serão perenes.
Singapura, uma potência independente
Um
dos países que mais obtiveram êxito após a conquista de sua
independência é Singapura. A ilha, conhecida como A Pérola da Ásia,
separou-se do Reino Unido em 1963. Inicialmente, o território fez parte
da recém-formada Malásia, mas a deixou apenas dois anos depois, devido à
preferência do povo de etnia malaia pela cultura chinesa. Em 1965, sob a
liderança do primeiro-ministro Lee Kuan Yew, o país começou a
estabelecer os princípios que norteariam seu desenvolvimento. Socialista
convicto, Lee reconheceu que a cidade-Estado prosperaria melhor ao
adotar as bases de uma economia liberal, ou seja, livre-comércio,
incentivos para a criação de empresas e pouca regulamentação estatal.
Cinquenta
e seis anos depois, a economia de Singapura é considerada uma das mais
inovadoras, competitivas, dinâmicas e favoráveis aos negócios no mundo.
Mais de 7 mil multinacionais estão em operação no país, fator
fundamental na geração de empregos e criação de riquezas. Não há salário
mínimo e, portanto, a taxa de desemprego na cidade-Estado é uma das
mais baixas do globo. Singapura tem baixos índices de corrupção, possui
boa infraestrutura e força de trabalho qualificada. Os serviços
financeiros, o refino de petróleo, a produção de componentes eletrônicos
e o turismo são os principais ramos da economia do país.
O
sistema legal de Singapura, considerado um dos melhores e mais
confiáveis do continente asiático, é baseado na common law inglesa com
características locais significativas. A pena de morte é obrigatória
para assassinato, por exemplo, enquanto pichadores são condenados a
castigos corporais. Em From Third World to First: The Singapore Story,
Lee Kuan Yew argumentou que sua própria experiência mostrou que a
pobreza não leva automaticamente ao crime, ao contrário do que dizem
sociólogos ocidentais. Segundo ele, não havia comida suficiente durante a
ocupação japonesa, mas a cidade permanecia segura porque as forças de
ocupação impunham punições draconianas aos infratores.
Cidades privadas, a evolução do conceito de “Estado mínimo”
As
cidades-Estado já consolidadas provam a eficiência de uma gestão
governamental descentralizada. Liechtenstein, por exemplo, é um modelo
de antifragilidade institucional — não há rupturas traumáticas no
sistema político do país. Hong Kong, por sua vez, está no topo do
ranking de qualidade e expectativa de vida, renda per capita e
facilidade para negócios. Já Singapura é o arquétipo para nações em
desenvolvimento, visto que evoluiu de país sem matérias-primas para
potência econômica.
Essas
experiências positivas contribuíram para o surgimento de uma ideia
ousada de organização social: as free private cities, um sistema em que
uma empresa privada atua como provedor de serviços e oferece proteção da
vida, liberdade e propriedade. O pacote inclui segurança interna e
externa, uma estrutura legal e regulamentar e resolução de disputas
independente. Os clientes — no caso, os moradores — pagam todo ano uma
quantia previamente estabelecida em contrato para receber esses
serviços.
A
companhia responsável pela gestão da cidade não pode alterar
unilateralmente o acordo firmado entre as partes. As disputas entre
moradores e o provedor de serviços governamentais serão ouvidas perante
tribunais de arbitragem independentes, como é habitual no direito
comercial internacional. Se a empresa ignorar as sentenças arbitrais ou
abusar de seu poder, os clientes vão embora e ela irá à falência. Dessa
maneira, o risco econômico impele o operador de serviços a tratar bem os
moradores e respeitar o contrato.
Honduras,
país localizado na América Central, é pioneiro nesse novo mercado. Em
seu território, na Ilha de Roatán, foi instalado o Prospera Village, uma
Zona de Emprego e Desenvolvimento Econômico (Zede) com alto grau de
autonomia que tem como objetivo a criação de postos de trabalho, a
aceleração do desenvolvimento econômico e a melhoria da qualidade de
vida dos hondurenhos. Embora faça parte de Honduras — conhecido por
poucas oportunidades de negócios e amplas intervenções do governo na
economia —, o Prospera Village está legalmente separado do resto do
país.
Os
operadores do Roatán Prospera, como o projeto é conhecido, podem
estabelecer as próprias leis, tribunais e modelos de segurança, bem como
seu código tributário e orçamento. A única condição imposta pelo
governo de Honduras para permitir o pleno funcionamento da região
autônoma é o pagamento de 15% de suas receitas. Para facilitarem a ação
dos investidores na ilha, os gestores construíram um ambiente que
minimiza a burocracia. O imposto de renda não excede 10%, mais uma taxa
anual de residência no valor de US$ 1.300 para estrangeiros e de US$ 260
para hondurenhos.
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| Honduras: projeto internacional. |
Conforme
previsto originalmente no projeto das Zedes, as disputas legais serão
tratadas por meio de arbitragem ou tribunais locais aplicando os
princípios da common law inglesa, similar ao modelo adotado pelo Dubai
International Financial Centre (DIFC). Um profissional técnico proposto
pela operadora de serviços, em concordância com os residentes, atuará
como a principal autoridade governamental, cabendo à Suprema Corte
hondurenha a avaliação dos tribunais e juízes atuantes no Prospera
Village.
Estima-se
a população de Roatán em mais de 50 mil pessoas. Hoje, apenas 10% da
ilha é povoada — os 90% restantes são compostos de florestas e áreas de
selva. Os residentes são das mais variadas origens: africana, britânica,
indígena. Há dois hospitais principais na região: um público, o outro
privado. Foram construídas 68 instituições de ensino na Zede — 35 para a
pré-escola, 20 para o ensino primário e 13 para o secundário. Além
disso, a ilha possui 18 centros educacionais bilíngues, com inglês e
espanhol.
Mais
ao norte do continente americano, nos Estados Unidos, também há
iniciativas libertárias. Sandy Springs, cidade localizada no Estado da
Geórgia, não é uma comunidade autônoma, mas chama atenção por outro
motivo: praticamente todos os serviços municipais são prestados por
empresas privadas — com exceção da polícia, do corpo de bombeiros e dos
tribunais. Em caso de ineficiência, os provedores podem ser substituídos
pelo prefeito ou pelo Conselho Municipal. Esse turning point ocorreu em
2005, quando moradores insatisfeitos com a gestão do condado
conseguiram, por vias legais, estabelecer a cidade como um município
semi-independente. Dez anos após sua fundação, Sandy Springs chegou à
conclusão de que a qualidade dos serviços municipais melhorou
consistentemente, e com custos de 10% a 40% mais baixos, conforme relata
Oliver Porter, um dos idealizadores do projeto. Durante a década, o
condado não apenas deixou de acumular dívidas, como também construiu uma
reserva de US$ 45 milhões.
O
sucesso de Sandy Springs motivou dezenas de cidades norte-americanas a
criar modelos de gestão similares. Recentemente, o governador de Nevada,
Steve Sisolak, apresentou uma proposta de criação de Zonas de Inovação
em todo o Estado. A ideia é atrair empresas de tecnologia e dar a elas o
poder de criar o próprio governo. Em troca dessa autonomia, Nevada
renunciaria à cobrança de impostos e forneceria pacotes de incentivos
fiscais aos empreendedores. As companhias interessadas no projeto
precisam comprovar a posse de US$ 250 milhões em capital e ter um plano
de investimento de longo prazo, com aportes que devem somar, no mínimo,
US$ 1 bilhão nos primeiros dez anos de administração das cidades.
O que todas essas cidades têm em comum
Liechtenstein,
Hong Kong, Singapura, Prospera Village e Sandy Springs têm em comum o
irrefreável desejo de autodeterminação, virtude sem a qual teria sido
impossível atingir seus atuais estágios de riqueza, dadas as notáveis
circunstâncias adversas — geográficas, territoriais e políticas. A ordem
social estabelecida por esses locais só logrou êxito porque foi calcada
em princípios comuns a todos, a saber: (1) interesse econômico no
sucesso da sociedade; (2) responsabilização dos criminosos; (3) direito a
secessão sem nenhum obstáculo financeiro ou de outra ordem; (4) não
concessão de benefícios especiais a nenhum grupo; (5) respeito absoluto
às normas estipuladas em contrato; e (6) direito a julgamento em
tribunais independentes ou órgãos de arbitragem neutra.
Em
resumo, essas cidades prosperam porque indivíduos com interesses
compartilhados se unem, voluntariamente, para satisfazer suas aspirações
econômicas, sociais e culturais.
BLOG ORLANDO TAMBOSI


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