Demasiados se encantaram com os cem anos do PCP, poucos se lembraram de que comunismo não rima com democracia pois resulta em ditaduras. Sendo liberal e antifascista, só posso ser também anticomunista. Artigo de José Manuel Fernandes, publisher do Observatório:
Vai
por aí um grande enlevo com o PCP. Eu sei que o partido fez 100 anos,
uma bonita idade. Eu sei que o primeiro-ministro aprecia a forma
discreta e, reconheça-se, séria com os comunistas negoceiam, sem números
para a bancada à moda do Bloco. Eu também sei que Jerónimo de Sousa tem
um lado de avô inofensivo que desarma maiores alarmes. Mas daí a passar
ao PCP um estatuto de partido moderado e democrata a quem devemos estar
agradecidos – sim, isso mesmo: agradecidos – vai uma grande distância.
Que Daniel Oliveira escreva sobre o que a democracia deve ao PCP
faz parte da ordem natural das coisas. Afinal de contas ele cresceu no
PCP e mesmo tendo deixado de ser comunista nunca deixou de ser aquilo a
que antigamente se chamava um “compagnon de route”. Já bem diferente é
constatar a necessidade de Miguel Esteves Cardoso dar vivas aos comunistas
e desejar que ainda cá estejam daqui por cem anos. Mais extraordinário
porventura ainda será olhar para uma banca de jornais e ler, sobre uma
fotografia que ocupa toda a largura de uma primeira página, um título
extraordinário, sugerindo que o PCP anda há um século “em busca de uma sociedade que ainda não existe”.
Como? Mas então se há cem anos o PCP nasceu precisamente em nome de uma
sociedade que já estava a ser construída, a sociedade soviética? Mas se
quando a Revolução Russa fez 50 anos (em 1967), o Avante!, ainda
clandestino, dedicou uma edição inteira às maravilhas da pátria do
socialismo (quem tiver dúvidas, é consultar a edição que está online), em que curva do caminho se perdeu então essa sociedade ideal?
Podia
continuar, mas chega. O meu ponto é simples: se o PCP continua a ser
aquilo que é, ou seja, um partido comunista que se mantém fiel ao
marxismo-leninismo – e basta ler a edição deste mês de O Militante, para o confirmar, nomeadamente os artigos O PCP faz 100 anos – O caminho que nos trouxe até aqui e Lénine, o leninismo e a Revolução Portuguesa
–, então porque tratamos um partido que tem um sonho totalitário com
mais benevolência do que os extremistas de sinal contrário? A explicação
talvez se encontre no facto de esta gente não só não ler o que o PCP
escreve para os seus, como nunca ter lido Lenine e, por isso, não saber
que a arte da dissimulação é inata ao leninismo.
Todos
os políticos mentem, uns mais do que outros, mas quando George Orwell
escreveu 1984 não estava a pensar em políticos normais. O doublespeak
que ele imaginou não implicava apenas tratar “cortes” por “poupanças”,
como há quem com muita desonestidade intelectual sugira – o doublespeak
passava por dizer que paz era guerra e amigo era inimigo conforme as
conveniências do momento e remetiam directamente para a forma como, na
URSS estalinista, se controlava a linguagem e se mudavam as políticas da
noite para o dia.
Isto
porque o que conta, para os comunistas, são os fins a alcançar, os
meios não interessam. Por isso aquilo que se ataca hoje, pode-se
defender amanhã. Em 1975, por exemplo, o PCP tentou primeiro evitar as
eleições para a Assembleia Constituinte, depois contrapôs-lhe sempre a
legitimidade das ruas e da “aliança Povo-MFA”, no auge da tensão chegou a
levar os sindicatos da construção civil a cercar o Parlamento, tudo
isto num tempo em que Álvaro Cunhal dava entrevistas garantindo que em
Portugal não haveria uma “democracia burguesa”. Depois, passado o 25 de
Novembro e aprovada a Constituição, o PCP trocou de barricada e
encontrou no texto fundamental a sua nova trincheira. É um salto
estratégico que Carlos Brito descreve muito bem nas suas memórias, Álvaro Cunhal – Sete Fôlegos de um Combatente,
mas poucos conhecem os detalhes desta viragem, muitos julgando que o
mantra de João Ferreira na última campanha presidencial sempre foi o do
partido. Não, não foi: só se tornou linha do PCP depois da derrota do
PREC.
Mas
isto é um detalhe, é política do dia a dia até porque se passa em
democracia e com o PCP fora do poder. Diferente, muito diferente, é
quando os comunistas tomam o poder. O princípio é sempre o mesmo – os
fins justificam os meios. Quaisquer meios. Ora como os comunistas
acreditam que estão do lado certo do História, acreditam até que a sua
acção acelera História, ainda se sentem mais legitimados a actuar sem
limites em função do seu “ismo”. É certo que fazer mal que não lhes foi
exclusivo, agindo com o mesmo racional amoral de outros militantes
extremistas, como escreveu Isaiah Berlin: “Causar dor, matar e torturar
são actos geralmente condenados; mas se não foram cometidos para meu
benefício pessoal e sim em prol de um ismo – socialismo, nacionalismo,
fascismo, comunismo, de crenças religiosas fanáticas, do progresso, ou
do cumprimento das leis da História –, então são actos aceitáveis”.
Quem
levou esta lógica a maiores extremos foram os totalitarismos do século
passado, totalitarismos de que nos dias de hoje só sobram algumas
aberrações comunistas, como a da Coreia do Norte.
Mas
se quisermos ter uma ideia de como este tipo de raciocínio toca mesmo
as mentes mais brilhantes, basta citar a posição de um comunista
não-arrependido, o famoso historiador inglês Eric Hobsbawn que, ainda em
1994, numa altura em que já não havia qualquer dúvida sobre os crimes e
os horrores do comunismo e do estalinismo em particular, afirmou que,
mesmo que tivesse sabido, em 1934, que “estavam a morrer milhões de
pessoas no decorrer da experiência soviética”, não teria deixado de
apoiar Estaline porque “a hipótese de poder nascer um mundo novo de um
grande sofrimento continuaria merecer ser apoiada”.
A
nossa Rita Rato, hoje directora do Museu do Aljube com o beneplácito da
câmara de Lisboa e da intelligentsia lusitana, quando não quis
responder sobre o que pensava do goulag não foi seguramente porque
desconhecesse a sua existência – foi porque lhe faltou a frontalidade de
Hobsbawn. Posso estar enganado – o que duvido –, mas se a antiga
deputada for realmente uma crente (o comunismo tem muito de fé), então
ela também achará que há sacrifícios que são aceitáveis, também pensará
que há inimigos que têm mesmo de ser exterminados e que, numa fase
qualquer da transição para o comunismo, terá mesmo da haver ditadura do
proletariado.
Dir-me-ão:
mas há tantos comunistas que são tão boas pessoas, tantos que tão
genuinamente se preocupam com a sorte do seu semelhante e se inquietam
com os destino dos mais desvalidos, como pode um partido de gente assim
ser como o estás a descrever? A resposta é fácil e encontramo-la nos
livros de História: o problema é que as ideias têm consequências e
ideias perigosas, mesmo que aparentemente bem intencionadas, podem ter
consequências terríveis. O marxismo-leninismo em concreto sempre teve
consequências terríveis – talvez 100 milhões de mortos de consequências terríveis. Nenhum homem bom evitou nesses regimes que muito sangue fosse derramado.
Mas
se quisermos ir mais atrás, podemos ir até ao exemplo do mais puro dos
homens, do mais exemplar dos revolucionários, do incorruptível
Robespierre, que depois se tornaria, em nome da Revolução, da “Santa
Revolução”, no sumo sacerdote do Terror.
Mesmo
assim eu sei que tudo isto pode parecer estranho e excessivo para quem
nunca foi comunista ou nunca estudou o comunismo. Acontece que eu fui
comunista – não militante do PCP, mas de uma organização de
extrema-esquerda equivalente e que seguia a mesma cartilha –, li muito
sobre o que é ser comunista e, depois, sobre a história do comunismo.
Não só li como escrevi um livro de memórias sobre esse período da minha
vida, que acabou pouco depois dos meus 20 anos (Era Uma Vez… A Revolução).
O
corolário dessa experiência é que rompendo com o quadro mental do
comunismo, rompendo com um mundo onde nos dizem que somos moralmente
superiores aos demais (nunca esquecer que Cunhal escreveu um opúsculo
chamado “A superioridade moral dos comunistas”),
conhecendo a história e sabendo que ela levou sempre ao mesmo resultado
– ditaduras, miséria, guerra, atraso, mistificação – não pode ser a
mera indiferença. O comunismo não apenas outro “ismo”.
Da
mesma forma que a opressão no Portugal de antes do 25 de Abril acendeu
em mim a chama da liberdade e fez de mim um antifascista, fazendo-me
correr riscos à minha pequena escala, tudo o que vivi e sei do comunismo
fazem de mim um convicto anticomunista, e com muito orgulho. Parece que
isso hoje é tabu em Portugal, mas só pode ser porque não aprendemos
nada.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Ou
talvez alguma coisa tenha ficado, pois a verdade é que, de eleição para
eleição o PCP vai definhando. O povo português, como sempre, mostra ser
mais perspicaz do que as suas elites, que andam sempre atordoadas com
esta ou aquela moda, sem pensarem muito.

Nenhum comentário:
Postar um comentário