Principal organizador e editor das obras de Isaiah Berlin (um dos meus filósofos prediletos), Henry Hardy analisa a atualidade de seu pensamento em entrevista aos professores Rodrigo Caldeira e Jonathan Goudinho, para a página de Cultura do Estadão (texto publicado aqui em 2019):
Isaiah
Berlin (1909-1997) foi um dos maiores intelectuais do século XX. De
origem judaica, nasceu em Riga, atual Letônia, à época pertencente ao
Império Russo, emigrando com a família para o Reino Unido ainda jovem. A
mistura fina entre as culturas judaica, russa e britânica moldaram seu
espírito e suas formulações intelectuais. Como filósofo e historiador
das ideias, tornou-se célebre por duas contribuições em particular: o
significado e a aplicação do conceito de liberdade, com a icônica
distinção entre as liberdades negativa e positiva, e a noção de
pluralismo dos valores morais e culturais, com a igualmente
representativa metáfora do ouriço e da raposa. Presenciou a Revolução
Russa, a Primeira e a Segunda Grandes Guerras, a Guerra Fria e os
horrores do nazismo e do comunismo. Morreu aos 88 anos, em Londres,
celebrado como um dos principais pensadores liberais do século.
Berlin
era um grande orador, “o maior falador do mundo”, como muitas vezes foi
nomeado. Milhares de pessoas compuseram sua audiência em aulas,
palestras, discursos, entrevistas e participações em programas de rádio e
televisão. Ele também era um exímio ensaísta, com linguagem tão
compreensível que poderia enganar incautos com a ilusão de que
interpretar pensadores como Giambattista Vico, Johann G. Herder e
Aleksandr Herzen fosse tarefa fácil. O que nem todos sabem é que este
polímata judeu-russo não era muito afeito a sistematizar seu pensamento
em textos bem organizados. O conjunto de sua obra permaneceria esparso e
desconhecido se não fosse a persistência de um então entusiasmado
estudante de doutorado, o filósofo Henry Hardy (1949).
Hardy
conheceu Isaiah Berlin em 1972 na Universidade de Oxford, instituição
na qual Berlin construiu toda a sua carreira acadêmica (como estudante,
professor, pesquisador e gestor). As primeiras conversas nos espaços
comuns do Wolfson College logo despertaram em Hardy o interesse em se
aprofundar no pensamento de Berlin, surgindo a proposta da publicação de
um volume com alguns de seus ensaios. A primeira coletânea foi Russian
Thinkers, publicada em 1978. De lá para cá, Henry Hardy não parou mais:
editou ou coeditou 18 livros com textos de Berlin, preparou a publicação
de quatro volumes com correspondências do filósofo (que percorrem os
anos de 1946 a 1997), e recorrentemente colabora com outros estudiosos
do pensamento de Isaiah Berlin.
Desde 2000, Henry Hardy mantém a The Isaiah Berlin Virtual Library(http://berlin.wolf.ox.ac.uk/),
um acervo do trabalho de Berlin e outras referências importantes para
compreender sua reflexão. Recentemente, em outubro de 2018, lançouIn
Search of Isaiah Berlin: A Literary Adventure, um precioso livro de
memórias que envolve tanto sua atuação como editor quanto a de
intérprete do pensamento berliniano. A nova edição de The Sense of
Reality: Studies in Ideias and Their History, uma coletânea de ensaios
de Berlin, acaba de ser publicada pela Princeton University Press.
Atualmente, Henry Hardy é pesquisador honorário do Wolfson College, do
qual Berlin foi entusiasta e primeiro presidente.
Profundo
conhecedor não somente das formulações intelectuais, mas também do
próprio Isaiah Berlin, Hardy concedeu esta entrevista ao Estado da Arte
por e-mail, abordando temas caros a Berlin que permanecem presentes no
debate público contemporâneo. Como principal curador literário de
Berlin, Henry Hardy dá razões suficientes para a atualidade do
pensamento desse intelectual que tornou as ideias políticas tão
fascinantes quanto possível.
Rodrigo
Coppe e Jonathan Goudinho: Em “Uma Mensagem para o Século XXI” (Âyiné,
2016), o “credo breve” de Isaiah Berlin, ele tece notas de otimismo em
relação ao “futuro brilhante” que projetava para o novo século,
afirmando haver razões suficientes para tal. Curiosamente, ele não deixa
tão claro quais seriam essas razões. Você, que o conhecia tão bem,
saberia apontar quais eram suas esperanças?
Henry
Hardy: A passagem final desse texto é estranhamente otimista, e os
eventos subsequentes fazem com que pareça excessiva. Devemos nos lembrar
que o texto foi escrito para uma cerimônia de graduação [doutorado
honorário em Direito] em Toronto, e talvez ele quisesse encorajar seu
público a ser esperançoso com a humanidade. Contudo, há uma tendência em
todo o trabalho de Berlin de ‘acentuar o positivo’ na natureza humana e
subestimar o negativo. É claro que ele reconheceu o quão espantosamente
podemos nos comportar, como fez no começo desse discurso, e ele não era
um panglossiano simplista. Mas seu temperamento era caloroso e
positivo, e ele preferiu se concentrar em nossas potencialidades
benéficas. Elas existem, é claro, e embora haja retrocessos e avanços na
nossa luta para melhorar o estado político do mundo, acho que no geral
Berlin acreditava que o bem prevaleceria sobre o mal, ainda que a luta
nunca terminasse e fosse renovada em cada geração. Aqui ele fala do
poder da racionalidade, da tolerância e da democracia liberal para
melhorar o nosso mundo. Ele acreditava, em geral, no poder das ideias,
considerando ser dever dos pensadores profissionais promover as boas e
desacreditar as más, para que estas não ganhassem influência. No
discurso, ele está cumprindo esse dever e, ao fazê-lo, fornece motivos
para a esperança.
RC
e JG: Quase 25 anos depois de “Uma Mensagem para o Século XXI”, que
avaliação é possível ser feita sobre as esperanças de Berlin em relação
ao que a realidade tem mostrado?
HH:
Deve-se admitir que, em retrospecto, podemos ver que o otimismo de
Berlin foi até certo ponto prematuro. Se isso é um revés temporário ou
um caso de “reculer pour mieux sauter”, ainda não se tem certeza. Mas se
não buscarmos melhorias, mesmo a um nível irreal, nunca conseguiremos
alcançá-lo. Portanto, o erro de Berlin, se for isso mesmo, é certamente
um erro na direção certa.
RC
e JG: Berlin repetidamente criticava o “sacrifício humano nos altares
das abstrações” (em uma referência à Aleksandr Herzen), isto é, a
entrega total a grandes causas morais e políticas, como o comunismo, o
nazismo e o nacionalismo. Quais seriam os novos altares do nosso tempo? O
que Berlin teria a dizer, por exemplo, sobre as controversas causas
identitárias de hoje?
HH:
O principal altar do nosso tempo me parece ser a crença religiosa
fundamentalista, especialmente como visto entre muçulmanos fanáticos. Em
minha opinião, esse sempre foi um dos principais altares em que os
humanos foram sacrificados, e lamento que Berlin não tenha insistido
mais nisso. O fundamentalismo religioso é um exemplo perfeito da
excessiva certeza monista totalitária à qual ele se opunha
terminantemente, mas que por alguma razão não viu dessa maneira. Quanto à
política de identidade, não há nada de errado com isso em princípio. Na
verdade, é outra maneira de descrever a necessidade de pertencer que
Berlin, seguindo J. G. Herder, acreditava ser fundamental e permanente
na natureza humana, e não uma aberração temporária que deveríamos
aspirar a transcender. Contudo, isso pode sair do controle, como foi com
o nacionalismo, e se tornar agressivo e maligno. Uma identidade não
deve ser promovida às custas de outra igualmente legítima, e não devemos
nos tornar fanáticos por questões de identidade, vendo tudo como algo
que apoie ou seja hostil a esse propósito primordial. Mantida sob
controle, a identidade (ou um grupo de identidades sobrepostas) faz
parte de uma vida humana normal e saudável.
RC
e JG: O nacionalismo foi outro tópico recorrente no pensamento de
Isaiah Berlin, que já demonstrava preocupação com o fenômeno em textos
da década de 1990. O que temos visto atualmente, com a explosão de novos
nacionalismos ao redor do mundo, fazia parte do diagnóstico de Berlin?
Como você avalia, por exemplo, fenômenos como o Brexit, no seu Reino
Unido?
HH:
Sim, o relato de Berlin sobre o nacionalismo em termos de uma reação à
humilhação nacional se encaixa em muitos desenvolvimentos modernos. Ele
aprovou a consciência nacional benigna, que é parte da identidade
aceitável e necessária mencionada na minha resposta anterior. Mas quando
isso saiu do controle, tornando-se autoafirmativo às custas de outras
instâncias de pertença nacional, ele viu como algo injustificável e
destrutivo a ser preterido. Quanto ao Brexit, não me parece ser
necessariamente um caso de nacionalismo maligno. Há uma questão real
sobre qual é o melhor tamanho para as unidades políticas e quantas
culturas diferentes podem ser efetivamente administradas a partir de um
único centro. Imagine uma democracia mundial: isso seria uma receita
para o caos. Parte do apoio ao Brexit se deve à Europa ser vista como
uma unidade política muito grande para funcionar bem para todos os seus
povos constituintes, cujas necessidades e identidades diferem, às vezes
profundamente. Outra razão é que, em algum grau, [a Europa] é
antidemocrática, e se a pessoa acredita na democracia em princípio, essa
é uma lacuna grave. É claro que existem outros casos, como os EUA, onde
unidades ainda maiores operam com uma medida de sucesso, mas o contexto
histórico é completamente diferente.
RC
e JG: Embora Isaiah Berlin seja muito conhecido pela discussão sobre os
conceitos de liberdade, sua principal contribuição intelectual é a
doutrina do pluralismo, que à época de sua formulação já era uma noção
desafiadora. Qual é a relevância do pluralismo de Berlin nos nossos
dias, em que parece haver um acirramento de grupos disputando a
hegemonia cultural?
HH:
O pluralismo, se verdadeiro (e certamente eu acho que é), está na raiz
de uma compreensão adequada da situação humana, e se aplica em todos os
níveis, individual e coletivo, de choques dentro da consciência de uma
pessoa à incompatibilidades entre culturas e nações. Nesta época de
globalização, na qual culturas diferentes não vivem mais isoladas umas
das outras, precisamos mais do que nunca de uma compreensão verdadeira
da relação entre bens e objetivos diferentes, entre uma ampla variedade
de aspirações culturais incompatíveis, para que as diferenças não levem a
conflitos desnecessários. O pluralismo gera tolerância e compreensão
mútua entre indivíduos e grupos de todos os tamanhos. Monismos rivais
derramam sangue. O próprio termo “hegemonia cultural” reflete um
entendimento errado das relações das culturas entre si. Não é a questão
de uma cultura dominar outra, mas de coexistir com ela de forma
pacífica. Berlin acreditava que uma cultura deveria ser preponderante em
uma dada entidade política em favor de um mínimo de coesão e ordem
necessários, mas esse papel não é sensivelmente descrito como
“hegemonia”, termo que tem reflexos indesejados de supressão e
superioridade. O pluralismo é uma maneira de compreender conflitos de
valores, identidades e culturas que torna possível vê-los como aspectos
positivos de uma humanidade saudável, não como batalhas que devem ser
vencidas por um dos competidores em detrimento dos outros. Nós vivemos
em um jardim de muitas flores.
RC
e JG: Há décadas existe uma disputa sobre as posições ideológicas de
Isaiah Berlin: foi admirado pela direita, visto com desconfiança pela
esquerda e simpático à social democracia. No cenário político atual, com
tamanha polarização e radicalização, qual seria o posicionamento de
Berlin, o filósofo do conflito e do diálogo?
HH:
Berlin escreveu “Se alguma vez houve um liberal de centro,
extrema-esquerda da direita e extrema-direita da esquerda, sou eu
mesmo”. Ele acreditava em uma quantidade generosa de liberdade negativa,
mas também apoiava o New Deal e o Welfare State. Ele se identificou com
Turgenev, que estava aflito com a capacidade enlouquecedora de ver
todos os lados de uma questão com igual convicção. Isso é o que ele
chamou de “a situação liberal”, e não me parece um motivo de disputa,
exceto entre aqueles que anseiam por soluções excessivamente simples.
Como Turgenev, ele não conseguiu se simplificar. Suas visões e vida
refletem seu reconhecimento do pluralismo, que é complicado, mas
realista.
RC
e JG: Nos últimos anos, o Brasil está experimentando uma “onda
liberal”, com grupos que se fortaleceram à medida que os governos de
esquerda fracassaram. Que lição Berlin deixaria para aqueles que estão
sendo iniciados na doutrina política liberal?
HH:
“Neither a be-all nor an end-all be” (um lema outrora sonhado pelo
filósofo J. L. Austin). Reconheça o múltiplo, não entre em conflito por
uma única perspectiva. Tolere a diferença, não a enfrente, a menos que
seja maligna. Entenda a natureza humana da melhor maneira possível e use
essa compreensão como base para decidir o que deve ser aceito e o que
deve ser resistido; o que deve ser reforçado e o que deve ser corrigido.
RC
e JG: Em ‘In Search of Isaiah Berlin’, seu novo livro, você dedica
parte considerável para tratar de pluralismo e religião. Atualmente,
vários países experimentam um novo vigor das disputas entre grupos
religiosos e não-religiosos (ou seculares) no debate público. Que lições
as ideias pluralistas podem oferecer nesse cenário?
HH:
Um bom pluralista tolerará as crenças religiosas mesmo que não concorde
com elas, desde que elas próprias não conduzam à intolerância a outras
crenças desse tipo. No entanto, eu próprio acredito que o pluralismo é
incompatível com as principais religiões do mundo, que me parecem
inevitavelmente monistas e, portanto, propensas à intolerância e ao
autoritarismo. Portanto, sou a favor de um estado secular; sou um
oponente da religião organizada, e defendo que é dado à religião muito
espaço no discurso público. (Berlin, devo acrescentar, provavelmente não
compartilhava plenamente dessa visão, pelo menos na forma em que a
sustento.)
RC
e JG: Nos últimos anos, houve um considerável interesse no conjunto da
obra de Isaiah Berlin ao redor do mundo. A que você atribui isso? Que
tipo de sinal essa busca pelo trabalho de Berlin parece indicar?
HH:
Berlin me parece ser um pensador de grande humanidade e sabedoria, que
aborda os problemas humanos centrais em prosa acessível e elegante. Sua
compreensão da natureza humana, seu “senso de realidade”, é raro e
profundo, e qualquer pessoa inteligente que queira fazer perguntas
sondando sobre a situação humana, encontrará em seus escritos uma rica
mina de insights satisfatórios. Quando alguém o lê, sente-se em boas
mãos.
Rodrigo
Coppe Caldeira é Historiador e professor do Programa de Pós-graduação
em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais.
Jonathan Goudinho é jornalista e mestrando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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