A predileção do brasileiro por por café açucarado ou sem açúcar revela muito das nossas aspirações políticas. Bruna Frascolla para aa Gazeta do Povo:
Algumas
situações me lembram o ato da minha avó ao me ver tomando café preto,
sabendo que não boto açúcar, nem adoçante. Ela olhava, parava e
exclamava, com muita dramaticidade: “COITADA!”
Os
brasileiros devem tomar café à vontade desde o século XIX, quando o
café se torna a grande commodity do Brasil. Antes disso, qual era a
grande commodity? O açúcar. Daí não ser de admirar que os brasileiros
carreguem a mão no açúcar e que tenham adotado o hábito de tomar café
misturando-o ao açúcar. Isto depois de passá-lo por um arcaico coador de
pano, que pode ser confeccionado em qualquer zona rural.
No
século XIX, o expresso nem existia. Como o café só se massificou na
Europa no séc. XX e a imigração para o Sul do Brasil começou antes
disso, o colono louro que fala dialeto alemão toma um café igual ao do
caboclo do Cerrado e ao do negro do Recôncavo. Todos aprenderam a tomar
café aqui. Assim, é provável que tenhamos um consenso pelo Brasil rural
de Norte a Sul: o cafezinho é uma bebida doce.
Tomar
café amargo é coisa de centro urbano, muito provavelmente introduzida
por imigrantes italianos do século XX. Nas grandes cidades, o coador
arcaico foi ofuscado pelas máquinas sofisticadas, inventadas por uma
Europa já industrial. Café expresso e amargo é chique e moderno.
Juntando-se a isso o fato de que hoje, nas grandes cidades, todo mundo
está às voltas com a balança, cortar o açúcar do cafezinho se torna
desejável por razões de saúde ou, o que é mil vezes mais comum, por uma
questão de beleza, para “perder a barriga”.
Rascunhemos
um corte urbano vs. rural que vale para todo o Brasil: no ambiente
rural, nem passa pelas cogitações deixar de adoçar o café; no ambiente
urbano, os hábitos tradicionais do país são recalcados para aderir ao
gosto trazido pelo imigrante europeu da era industrial, subitamente tido
por mais chique e mais evoluído. Frise-se que esse modelo europeu
industrial encheu os olhos dos brasileiros até mesmo quando era nos
Estados Unidos, e não na Europa, que a elite política buscava
inspiração. Nos Estados Unidos se bebe café frio e aguado, mas essa
nunca foi a meta do povo metido a chique.
Quanto
ao meu café, é que essas foi uma das poucas coisas em que aderi aos
parentes com pé no Eixo, que têm bem essa cabeça de europeu industrial
que o brasileiro complexado fica babando e tentando imitar, mas não
entende. Para eles, e para mim, café é uma bebida amarga e forte. Tomo
todo dia contente. E ficava exasperada quando vinha minha avó dizer
“COITADA!”. Tem coisa mais embaraçosa do que gente sentindo pena de você
quando você está feliz?
Minha proposta para o IBGE
Se
eu mandasse no IBGE, colocaria a seguinte pergunta: “O que você acha de
café sem açúcar? Não vale botar adoçante”. As opções seriam:
A. MISERICÓRDIA!! (Versão gospel: TAMARRADO!!)
B. Eu quero tomar assim, pra perder a barriga! Segunda-feira eu começo.
C. Só gosto assim.
No
Nordeste, descontadas as capitais, a resposta massiva seria A. Nos
centros urbanos Brasil afora, daria B nos apartamentos, B entre as
mulheres da favela e A entre os homens da favela. Menos de 1%
responderia C. O IBGE descobriria tratar-se de gringos residentes no
país, filhos ou netos de europeus que vieram por volta da Segunda Guerra
Mundial (feito eu), os gourmets e os farialimers que mudaram o mindset.
E,
se eu mandasse no IBGE, usaria o mapa do cafezinho para traçar perfis
de mentalidades. Os moradores das áreas com predomínio de B leriam o meu
último texto e ficariam com pena do povo da roça. Como podem viver
trabalhando pela subsistência? Quanta pobreza! Essas pessoas saem de
casa de madrugada para não acumular nada?
Nisso eu me lembro da minha avó, que olhava para uma pessoa contente e ficava com dó.
Ao espelho
O
brasileiro da resposta A e o da resposta B divergem quanto aos ideais –
pois apenas um deles achou que é uma boa ideia imitar o europeu
industrial. No entanto, o gosto de ambos é o mesmíssimo, já que mal
atravessa a cabeça deles a ideia de que alguém pode tomar o café amargo
por prazer. Para ambos, o café gostoso é o café doce. As opiniões
discordam, o sentimento concorda.
No
quesito cafezinho, o povo da roça está em paz com o próprio paladar:
eles tomam café do jeito que gostam e não esquentam a cabeça com a
balança porque fazem trabalho braçal. Já o povo da cidade é que tem que
criar um cardápio mais frugal para se adaptar a um estilo de vida muito
mais sedentário do que os dos seus antepassados roceiros.
Será que o mesmo não vale para objetivos de vida? Talvez falte ao brasileiro urbano um bom espelho.
“Agricultura
de subsistência” é uma expressão demonizada pela nossa
intelectualidade, acometida por severo complexo de vira-lata. Isso tem a
ver com a idealização marxista do industrialismo: Antonio Paim já
chamou à atenção que Marx pensava a economia futura como se fosse tudo
indústria, sem dar uma palavra sobre agricultura. Enquanto são tratados
como coitados os pequenos agricultores, os grandes são demonizados como
latifundiários opressores. Não há espaço para a vida rural na cabeça dos
mais intelectualizados. Que são urbanos.
Por
hoje, deixemos para lá os latifundiários. Vamos apenas pôr o espelho
defronte do homem urbano de classe média: para que trabalha, senão para
garantir a subsistência da família e bancar alguns pequenos prazeres?
Não é um engano supor que todo homem é vidrado em lucro e em
produtividade?
Existem
indivíduos com excepcional paixão pelo lucro e pelos negócios. Mas não
temos motivos para crer que eles sejam os mais numerosos numa sociedade,
nem os mais felizes. Creio que as pessoas comuns que não estão numa
situação desconfortável podem ser descritas como subsistentes. Uns podem
ser felizes assim no campo; outros, felizes na cidade. Fala-se em
“agricultura de subsistência”, mas é possível falar também em “advogado
de subsistência”, “jornalista de subsistência”, “lojista de
subsistência”, “pedreiro de subsistência”, “faxineira de subsistência”,
etc.
A
vida rural é mais barata do que a vida dos centros urbanos; por isso
não é de admirar que o agricultor de subsistência tenha menos dinheiro.
Pobreza traz seus problemas já conhecidos, dentre os quais eu destacaria
falta de cuidado médico-hospitalar. Está frito quem precisar de UTI no
SUS, ou então quem precisar acompanhar com regularidade um câncer.
(Agora, como a razão entre despesas e receitas em geral importa mais do
que o valor absoluto, tanto faz se você ganha um Bolsa Família e gasta
uma bagatela para viver plantando mandioca, ou se você mora numa grande
metrópole com um padrão de gastos insustentável: de um jeito ou de
outro, acaba-se no SUS).
Por
outro lado, no ambiente rural ninguém sabe o que é um trans
não-binário, de modo que as meninas não acham que castração química ou
amputação dos seios são boas ideias. Saúde mental é um problema sério em
jovens de ambientes urbanos mais intelectualizados. E não é nada ousado
dizer que não precisava ser assim: bastava os brasileiros deixarem de
ser trouxas. Em vez de mirarmos o exemplo de países cheio de gente
doida, que não conseguem comprar saúde mental com a montanha de dinheiro
que têm, deveríamos dar valor à cultura que temos em casa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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