Até agora, o Brasil é refém de vacinas estrangeiras, apesar de ter uma consolidada produção de imunobiológicos nacionais. Muito em breve podemos necessitar de uma segunda geração de vacinas e ainda não temos uma ação sólida contra o vírus original. Artigo de Fernando Bittencourt Luciano para a Gazeta do Povo:
Nas
últimas semanas, estamos vivendo um período de angústia constante em
todo o país. O que parecia estar perto do fim voltou com mais força do
que presenciamos nos últimos 12 meses. A maior parte do sistema de saúde
brasileiro, tanto público quanto privado, está colapsado. As filas nas
UTIs são gigantescas. Pacientes estão sendo intubados em enfermarias e
muitos não estão sendo sequer atendidos por falta de vagas,
simplesmente. Parece que a mistura entre a queda de casos do novo
coronavírus com a chegada da vacina deu a falsa sensação de que o pior
estava passando. As pessoas relaxaram. E isso acontece em um momento do
ano no qual o número de casos de doenças respiratórias naturalmente
começa a crescer com a chegada do outono. Além disso, estamos diante de
variantes do Sars-CoV-2 mais contagiosas.
Se
não agirmos logo, com maior eficácia, criaremos a fórmula perfeita para
uma resolução ainda mais complicada. Temos um número gigantesco de
casos da doença no Brasil, e a taxa de vacinação caminha a passos muito
lentos. Até 10 de março, somente 4,26% da população havia recebido a
primeira dose da vacina, enquanto apenas 1,5% recebeu a imunização
completa. O cenário criado é de alta disseminação do vírus aliada a um
percentual baixo da população efetivamente imunizada.
Com
essas características, causamos uma situação conhecida como pressão
seletiva. Mas o que isso quer dizer? Os vírus são mutantes e, apesar das
taxas de mutação serem baixas, são espécimes que se multiplicam de
maneira exponencial e que se encontram aos bilhões dentro de cada pessoa
infectada. Invariavelmente, estamos criando mutantes a todo momento.
Normalmente, eles não causam problemas. Mas quando a mutação gera uma
vantagem competitiva, as coisas podem se tornar mais graves ou perpetuar
o problema por muito mais tempo.
Foi
o que aconteceu com a variante P1, que é mais contagiosa do que o vírus
original. Agora, temos uma taxa pequena da população imunizada que
segue entrando em contato constantemente com vírus. É muito plausível
que alguma nova variante possa escapar da imunização das vacinas atuais
por possuir características diferentes do vírus original. Isso significa
que pessoas já vacinadas não estariam mais imunes à nova variante – e
se ela também for altamente contagiosa, a doença se perpetua, fazendo
com que precisemos de uma nova geração de vacinas. Isso ocorre todos os
anos com o vírus influenza, e é por isso que novas vacinas são
produzidas com grande frequência contra esse agente etiológico.
Como
se pode notar, o problema é muito complexo. E o processo de inovação
sempre parte do olhar para o entendimento do problema. Até agora, o
Brasil é refém de vacinas estrangeiras, apesar de ter uma consolidada
produção de imunobiológicos nacionais. Muito em breve podemos necessitar
de uma segunda geração de vacinas e ainda não temos uma ação sólida
contra o vírus original.
Demos
a largada correta quando, ainda em abril de 2020, o Governo Federal,
por meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), lançou um edital de combate à Covid-19. Nesse
chamamento público, muitas universidades e institutos de pesquisa
responderam, e mais de uma dezena de projetos de desenvolvimento de
vacinas foram contemplados com orçamentos de algumas centenas de
milhares de reais.
Segundo
o Ministério da Saúde, 15 iniciativas com diferentes soluções estão
sendo estudadas em todo o território nacional com financiamento público.
Excelente! Muitas delas apresentaram resultados promissores em
pouquíssimos meses. Palmas aos excelentes pesquisadores de nosso país
que, com recursos escassos, chegaram a resultados tão promissores. Como
boa parte da ciência produzida no Brasil, porém, não planejamos o
próximo passo da inovação.
As
universidades cumpriram seu papel de geração de conhecimento, mas elas
não são fábricas de vacina. Essas instituições não são especialistas em
transformar o conhecimento gerado em produtos comerciais – e esse nem é o
seu papel. Todas as 15 iniciativas citadas anteriormente ainda se
encontram na fase de testes pré-clínicos, ou seja, foram testadas em
animais e apresentaram bons resultados. Mas a fase mais crítica, que são
os testes em seres humanos, está longe. Muito provavelmente boa parte
dessas ideias fantásticas morrerão dentro dos muros das universidades
sem terem tido a chance de serem testadas em escala piloto por falta de
planejamento de nossos líderes.
Conversei
com o professor Breno Castello Branco Beirão, da Universidade Federal
do Paraná (UFPR), que faz parte de um dos grupos que desenvolveram uma
nova vacina em nosso país. Breno é professor do Departamento de
Patologia Básica, é especialista em imunologia animal e também é sócio
da Imunova, uma startup que trabalha com análises e desenvolvimento de
produtos para a saúde animal.
Ele
me contou que os pesquisadores desenvolveram uma vacina bastante
inovadora, utilizando uma nanopartícula formada por um polímero de
carboidrato produzido por uma bactéria. Nessa nanopartícula, foram
aderidas proteínas virais produzidas por outra bactéria, que em um
procedimento de engenharia genética recebeu o gene viral que codifica
essa proteína. No processo de produção dessa vacina, portanto, o vírus
não está presente. Um pequeno pedaço dele é produzido por uma bactéria, e
esse pedaço pode ser purificado e unido com a mini esfera produzida por
outra bactéria.
É
uma estratégia que vem da combinação de conhecimento de cientistas que
trabalham em áreas diferentes e – pasmem – não atuam diretamente com
saúde humana. Os livros que discorrem sobre inovação trazem muitos
exemplos como esse. Muitas vezes, a mudança radical vem de um olhar
fresco e pouco viciado sobre determinado tema. Essa nova vacina foi
testada em camundongos e apresentou uma produção de anticorpos superior
aos ensaios iniciais da própria vacina de Oxford. Apesar dos esforços
dos pesquisadores e do recurso público dispendido para alcançar esses
resultados, contudo, esse imunizante está fadado a permanecer nos
estudos pré-clínicos.
Beirão
conta que eles tentaram conversar com indústrias farmacêuticas para
realizar a transferência de tecnologia e com a própria Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa) para entender quais seriam os próximos
passos para levar essa vacina adiante. Todas as respostas foram, até
agora, frustrantes, que fazem qualquer pessoa desanimar e pensar em
desistir.
“Essa
nova plataforma de produção de vacinas [nanopartículas] poderia também
atender a outras doenças que custam muito aos cofres públicos
brasileiros, como a dengue, malária, leishmaniose e zika vírus”, comenta
o professor. É incerto se essa metodologia realmente terá sucesso, mas
talvez ela não tenha nem a chance de ser provada.
Alguns
desenvolvimentos de uma vacina nacional parecem estar encontrando
caminhos, mesmo que lentos, por meio de algumas cooperações já
estabelecidas e em centros que já produzem vacinas, como a Fiocruz e o
Instituto Butantan. Mas as perguntas mais importantes são: qual das 15
iniciativas é a mais efetiva e promissora? Vamos dar um ou dois tiros e
correr o risco de serem balas de festim enquanto poderíamos usar 15
balas? Estaríamos perdendo a chance de encontrar soluções para a
Covid-19 e, quem sabe, como efeito colateral, para outras mazelas que
nos afligem de maneira crônica?
São
questões difíceis, mas que com método e planejamento poderiam estar
sendo resolvidas a tempo para que não estivéssemos vivendo um momento
tão caótico. Esses 15 grupos deveriam estar trancados em uma sala (mesmo
que virtual), com empresas públicas e privadas que pudessem escalonar a
produção (piloto e industrial) e com a Anvisa, que coordena a aprovação
e deveria estar tendo um papel ativo de mostrar e apoiar nos caminhos
burocráticos, adicionado de recurso público para apoiar o processo de
validação da vacina.
Para
o leitor entender: todas as vacinas nacionais se encontram em fase
pré-clínica desde o ano passado, quando o edital foi lançado e esses
projetos foram aprovados, por falta de planejamento claro de quais
deveriam ser os próximos passos de desenvolvimento caso elas tivessem
sucesso na etapa inicial. Ainda são necessárias as fases de ensaios
clínicos, que vão desde um piloto com poucas dezenas de indivíduos até
uma escala de dezenas de milhares de pessoas. Em cada fase, é possível
obter respostas sobre se vale ou não a pena continuar. Isso custa muito
dinheiro. Provavelmente dezenas ou até mais de uma centena de milhões de
reais para vencer todos os estágios de uma única solução. Faça as
contas, porém. Isso é até barato para um Estado que sangra com uma
economia que abre e fecha constantemente e que perde milhares de vidas
todos os dias.
Quer
mais argumentos? Até agora, estamos reféns dos altos preços cobrados
pelas grandes corporações farmacêuticas, que, segundo valores
divulgados, variam de US$ 19,50 até US$ 37 por dose de vacina.
Precisamos de duas doses, na maioria das vacinas, para uma efetiva
imunização.
Para
os países que financiaram o desenvolvimento das vacinas, o preço é de
custo. No caso da vacina da AstraZaneca (Oxford), esse preço é de R$
16,70. Multiplique a diferença entre os valores de custo e de mercado
das vacinas pela população brasileira de quase 212 milhões de
habitantes. O resultado é de dezenas de bilhões de reais. Incentivar as
universidades, indústria e órgãos regulamentadores a fomentar uma
solução nacional em centenas de milhões de reais é uma conta
baratíssima.
Observando
o cenário atual, o desfecho mais provável é que teremos o vírus
circulante por muito tempo ainda, com o risco de termos muitas
variantes. Em algum momento, as vacinas chegarão para as clínicas
privadas, e quem tiver bolso irá saltar sobre qualquer fila de
prioridade. A população em geral ficará à deriva dos impasses
ideológicos e pouco científicos, como sempre ficou. Agora, se decidirmos
buscar um panorama diferente, como em qualquer projeto de inovação,
precisamos de estratégia, método de aprendizado, entregas rápidas e, o
mais importante de tudo, vontade política e pouca vaidade. A população
brasileira agradece.
Fernando
Luciano é diretor da Hotmilk, ecossistema de inovação da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (PUCPR), pesquisador da área de
Biotecnologia e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Animal
(PPGCA) também na PUCPR. Graduado em Farmácia e Bioquímica de Alimentos
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), também é doutor em
Food and Nutritional Sciences pela Universidade de Manitoba, no Canadá,
onde foi bolsista do governo canadense. Atuou também como pesquisador no
Guelph Research and Development Centre, no Canadá, e como docente
convidado na Universidade de Valência, na Espanha. No campo do
empreendedorismo, é CEO do NASSLE Group, focado em P&D, sua terceira
startup.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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