Esta semana, encontrei esse homem. É Mamadou Ba, um antigo cidadão senegalês, agora com documentos portugueses. Percebi também porque é que disfruta de tanta liberdade. Esta semana, Mamadou disse que era preciso “matar o homem branco”. Apelo ao assassinato? Não, nada disso. Uma multidão de voluntários precipitou-se logo a rodear o homem com uma defesa intransponível de muralhas, fossos e campos minados. Rui Ramos, via Observador:
Sempre
tive curiosidade de conhecer um homem totalmente livre. Livre, não como
é costume usar essa expressão hoje em dia, no sentido de uma pessoa
independente, mas livre no sentido de isento de quaisquer
constrangimentos, legais ou morais, na expressão das suas ideias e
sentimentos. Um homem, enfim, com toda a liberdade para dizer o que lhe
apetecer, sem recear consequências. Esta semana, encontrei esse homem. É
Mamadou Ba, um antigo cidadão senegalês, agora com documentos
portugueses. Percebi também porque é que disfruta de tanta liberdade.
Esta semana, Mamadou disse que era preciso “matar o homem branco”. Apelo
ao assassinato? Discurso de ódio, pelo menos? Não, nada disso. Uma
multidão de voluntários precipitou-se logo a rodear o homem com uma
defesa intransponível de muralhas, fossos e campos minados. Fomos, como
nos competia, sujeitos às devidas lições: tratava-se de uma citação;
tratava-se, acima de tudo, de uma metáfora. Citações e sobretudo
metáforas não têm mal nenhum, a não ser na torva cabeça da “direita
incivilizada”, de que felizmente o regime já obteve a lista com os nomes
todos.
Não
sei que mais admirar nos desculpadores de Mamadou, se a ignorância, se a
má fé. Falemos da ignorância. Mamadou citava Frantz Fanon? Mas as
palavras de Fanon nem no prefácio de Sartre a Os Danados da Terra tinham
um sentido meramente simbólico. Fanon foi um amigo e influência de
Holden Roberto, o líder da União dos Povos de Angola. Em 1961, seguindo
as lições do seu mestre, Roberto decidiu iniciar a campanha para a
independência de Angola matando os colonos brancos. Matando
metaforicamente? Não, matando literalmente. À catanada. Em Angola, entre
Março e Maio de 1961, aconteceu o maior massacre de população de origem
europeia alguma vez cometido em África. Ao lado de cerca de 1000
brancos, caíram também, sob as catanas dos discípulos de Fanon, milhares
de negros de etnias que, no norte de Angola, eram etnias erradas.
Homens, mulheres e crianças – decapitados, mutilados, esventrados.
Holden Roberto, o discípulo de Fanon, o amigo de Fanon, não percebeu o
que Fanon tinha escrito? Não sabia o que era uma metáfora?
A
metáfora já foi a desculpa de Julius Streicher, o maior propagandista
do anti-semitismo na Alemanha nazi, durante o julgamento de Nuremberga.
Entre 1923 e 1945, no seu jornal Der Sturmer, Streicher incitou
incansavelmente à morte dos judeus, ao seu extermínio, ao seu
desaparecimento. Mas em Nuremberga, em 1945, perante o Tribunal Militar
Internacional, argumentou que tudo aquilo era linguagem simbólica, que
de facto nunca concebera a morte literal dos judeus, mas apenas a sua
emigração para um simpático Estado judaico, a criar algures num recanto
agradável do mundo. Streicher não matara ninguém pessoalmente. Nem
sequer estivera implicado na máquina do extermínio dirigida por Himmler,
Heydrich e Eichmann. Mas o Tribunal de Nuremberga não considerou que as
metáforas de Streicher tivessem sido inocentes: percebeu que, sem o
ambiente criado por demagogos como Streicher, o extermínio das
comunidades judaicas da Europa não teria sido possível. Os grandes
crimes políticos requerem este estádio prévio da metáfora para serem
executados, porque é nessa fase metafórica que as futuras vítimas são
desumanizadas, transformadas em criminosos ou em simples peças de um
sistema odiado, e portanto susceptíveis de serem eliminadas sem
escrúpulos, em nome da defesa da comunidade ou do triunfo da justiça. O
anti-semitismo nazi não tem comparação na sua enormidade. Mas o
anti-colonialismo à moda de Fanon tem, com esse movimento de ódio, uma
certa sintonia, neste sentido muito preciso: graças às metáforas de
Streicher e de Fanon, aqueles que geriram as câmaras de gás ou que
empunharam a catana não viram naquela mulher e naquela criança, sozinhas
e indefesas, o que elas eram — apenas uma mulher e uma criança –, mas,
porque eram judias ou brancas, simples espécimes de raças inimigas e sem
direitos, e que era politicamente necessário e legítimo assassinar. Em
Angola, em 1961, foi assim: 1000 portugueses – homens, mulheres e
crianças – cortados à catana como colonos que mereciam morrer para o
colonialismo acabar. A metáfora de Fanon, para eles, teve esse sentido
sangrento.
Fanon
concebeu a chamada relação colonial como uma simples relação de
violência do colonizador sobre o colonizado. Justificou assim todas as
violências dos colonizados sobre os colonizadores. No entanto, Fanon é
ensinado acriticamente em cursos de ciências sociais das nossas
universidades, com os seus incitamentos ao homicídio branqueados como
metáforas inocentes. E ai de quem, como esta semana fez André Azevedo
Alves, duvide dessas inocências. Foi imediatamente cercado pelos
tambores de ódio da esquerda radical, toda muito convenientemente
versada em leituras simbólicas de Fanon.
E
a propósito, eis uma das razões pelas quais em Portugal só há
extremismos à direita. De facto, como gracejou Pessoa, tudo é símbolo,
tudo se pode interpretar como metáfora. Mas nem sempre com a mesma
complacência. Mamadou Ba pretende “matar o homem branco”? Na realidade,
deseja apenas reformar pacificamente um “sistema racista”. Mas eis um
político da direita com um plano para reformar a Segurança Social.
Também o que ele diz será interpretado como metáfora, mas neste sentido:
na verdade, o que ele quer é privar violentamente os pobres de qualquer
rendimento, e portanto exterminá-los. O Mamadou Ba que anseia por
“matar o homem branco” é um cavalheiro culto e gentil que cita Fanon; o
político de direita que pretende reformar a Segurança Social é um
assassino bárbaro que conspira para exterminar os pobres. Tudo em nome
das metáforas.
Ninguém
tem o direito de esperar que a esquerda deixe de fazer isto. É o que
lhe convém: inocentar os seus, e demonizar os outros. O que compete a
uma direita democrática não é queixar-se e exigir à esquerda que
abandone os seus critérios duplos: é não se deixar impressionar, pois se
esses critérios funcionam, é apenas porque uma parte da própria
direita, por medo ou conveniência, os adapta para distinguir, entre os
seus, aqueles que têm direito ao título de “democratas” e os outros, que
podem ser tratados como “fascistas”. A força do esquerdismo não vem da
esquerda, mas da cobardia da direita. E não, isto não é uma questão
tribal, de equilíbrio entre clubes. É uma questão de pluralismo e de
liberdade, porque liberdade e pluralismo não existem onde o debate está
tão enviesado. Nunca chamarei a polícia, como é hábito fazer à esquerda,
por causa do que alguém disser. Acho bem que Mamadou Ba seja um homem
com liberdade para citar Fanon ou o que lhe apetecer. O que também acho,
no entanto, é que Mamadou Ba não pode continuar a ser o único homem com
liberdade em Portugal.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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