O que nos diz a pintura "Máscara Que Se Usa nos Negros Que Têm o Hábito
de Comer Terra”, de Debret? Artigo de Theodore Dalrymple para a Oeste:
Dizer que algo é de segunda categoria geralmente serve para condenar,
mas acho isso um erro. Quando se considera a escala existente do melhor
para o pior, a segunda categoria ainda é muito boa. Sem ela, e todas as
gradações inferiores a ela, não saberíamos o que é de primeira.
Gosto de arte de segunda categoria, o que não significa que goste, é
claro, de má arte, apenas de arte que não chega ao padrão de Velázquez,
digamos, ou Vermeer. Tenho na minha coleção (se essa não é uma palavra
muito imponente para os quadros nas minhas paredes) muitas obras de
segunda categoria que são decorativas, charmosas e bonitas — por
exemplo, páginas requintadas da caligrafia árabe do século 16 (que são
vendidas por nada), ou uma aquarela de um homem chamado Malcolm Walker,
antigo general do exército britânico, de um homem albanês em
Constantinopla durante a Guerra da Crimeia (1854-1856). Esta pequena
pintura, de uma serenidade inesgotável, retrata um homem de roupão cinza
virado quase totalmente de costas, seu bigode apenas mostrando um lado
de sua cabeça e a borla de seu barrete vermelho pairando sobre o outro.
Naqueles dias, oficiais militares eram ensinados a desenhar e pintar,
sem dúvida para fins de coleta de informações, mas o General e Sir
Malcolm Walker (ele acabou se tornando um lorde) claramente tinha
talento artístico.
O que me leva a Jean-Baptiste Debret (1768-1848), de quem eu não
conhecia nada até gentilmente receber em minha última visita ao Brasil
um catálogo raisonné, um livro lindíssimo, de Marcelo Consentino. Estava
um pouco envergonhado de nunca ter ouvido falar de Debret, mas me
consolei com a ideia de que, por mais eruditos que possamos ser, nosso
conhecimento é sempre finito enquanto nossa ignorância permanece sempre
infinita.
Ninguém, penso eu, chamaria Debret de grande artista, pois sua
técnica era muitas vezes instável e nem sempre adequada a seu tema,
evidente em seus retratos. Porém, a soma artística de suas aquarelas do
Brasil pouco antes e depois da Independência é maior do que a soma de
suas partes. Na verdade, é exatamente o tipo de arte que eu gostaria
para adornar minhas paredes: um estímulo infinito à imaginação, mas não
tão grande que faria alguém se sentir mal com a comparação.
O texto do livro nos adverte contra interpretar as pinturas de
Debret, numerosas como elas são, como um tipo de guia para a realidade
histórica do tempo do artista. O alerta faz sentido. Sei que precisamos
de estatísticas, memórias e outros documentos para conhecer o Brasil da
época — embora duvide que alguém possa olhar para as centenas de imagens
e não acreditar que o artista tenha obtido pelo menos alguma
compreensão sobre a vida da época que retratava. Afinal, nossa imagem da
sociedade em que vivemos é igualmente incompleta, por mais insistente
que seja nossa afirmação de entendê-la.
Debret não se esquivou dos horrores da escravidão: sua representação
de um feitor açoitando um escravo nu amarrado em uma espécie de bola, um
estrado atrás de seus joelhos dobrados, está entre as imagens mais
horripilantes por mim conhecidas. O feitor açoita com a raiva de uma
pessoa que está fazendo o mal em nome do bem, a crueldade de sua ação é
algum tipo de garantia de que é necessário: a quem se faria tal coisa a
menos que fosse necessário? Em outra pintura, um escravo nu, amarrado a
um pelourinho, está sendo açoitado com tanta força (por um homem negro,
que presumivelmente está se saindo muito melhor no sistema) que a pele
de suas nádegas foi esfolada. Quase tão terrível é o fato de que alguns
escravos acorrentados e amontoados estão olhando, esperando sua vez de
serem açoitados.
No entanto, ao mesmo tempo, a impressão geral da sociedade é de
considerável mérito estético, pelo menos em comparação com a da
modernidade industrial. Cada instrumento, cada ferramenta, é lindamente
moldado; mesmo o vestido pobre em tecido de boa cor e design. A
arquitetura colonial portuguesa é de uma graça raramente igualada por
qualquer outro vernáculo arquitetônico, e é perfeitamente adequada ao
clima. Em comparação com as casas dos bilionários californianas, que
geralmente são uma bagunça estética, templos ao luxo sem gosto, a
arquitetura brasileira comum da época era magistral. Não é que não possa
ser reproduzida hoje, pelo menos pelos ricos: é que não estamos
preparados para admitir que não podemos fazer tão bem, muito menos
melhor. Ah, se Brasília tivesse sido construída quando foi pensada pela
primeira vez!
Uma pintura em particular me intrigou: Máscara Que Se Usa nos Negros
Que Têm o Hábito de Comer Terra, uma condição conhecida como pica. Um
homem, nu da cintura para cima e vestido com trapos abaixo dela, com
costelas à mostra e aquela postura perfeitamente vertical da pessoa
acostumada a carregar cargas na cabeça (ele equilibra um cântaro enorme e
elegante, quase um terço de sua altura), usa uma máscara de ferro
pontiaguda pintada de branco, com formato que lembra as máscaras que os
médicos usavam durante epidemias de peste em Veneza.
O título da imagem (particularmente em francês, que fala da paixão do
homem de manger de la terre) faz parecer que aqueles que comem a terra o
fazem a partir de algum capricho estranho, como outros amam morangos ou
cerejas. No entanto, na verdade, pica ocorre naqueles que estão
carentes de ferro; em tempos em que a tinta ainda continha chumbo,
crianças da cidade deficientes de ferro eram conhecidas por se
envenenarem por chumbo por comer tinta contendo chumbo em vez de terra.
O fato de Debret ter representado este indivíduo desnutrido com sua
curiosa máscara e tudo, implicando no título que havia muitos outros
homens que compartilhavam sua paixão por comer terra, sugere que a
deficiência de ferro era comum à época. Isso pode ter acontecido em
razão da dieta inadequada, ou muito possivelmente por causa de amarelão —
sete em cada oito pessoas, informou Debret em relação ao seu quadro de
uma loja de sapateiros, andava descalço no Brasil da época. E o amarelão
levava à perda crônica de sangue dos intestinos e, portanto, à
deficiência de ferro.
De fato, uma única imagem — e seu título — pode nos dizer bastante.
Theodore Dalrymple é o pseudônimo
do psiquiatra britânico Anthony Daniels. Daniels é autor de mais de
trinta livros sobre os mais diversos temas. Entre seus clássicos
(publicados no Brasil pela editora É Realizações), estão A Vida na
Sarjeta, Nossa Cultura… Ou O Que Restou Dela e A Faca Entrou. É um nome
de destaque global do pensamento conservador contemporâneo. Colabora com
frequência para reconhecidos veículos de imprensa, como The New
Criterion, The Spectator e City Journal.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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