Reportagem de Leonardo Desderi para a Gazeta do Povo aborda a falta de liberdade no ambiente universitário, onde predomina a ideologia esquerdista:
A liberdade de expressão está sob ataque nas universidades. Por um
lado, há uma inquietação crescente quanto à dificuldade de se discutir
ideias que fujam do consenso dominante, sobretudo na área de
humanidades, em que a cultura do cancelamento fica cada vez mais
implacável. Por outro, o negacionismo científico e o
anti-intelectualismo buscam esvaziar a legitimidade do discurso
acadêmico. Não por acaso, o problema da liberdade de expressão acadêmica
tem ganhado foco nas últimas semanas.
Um manifesto de intelectuais e artistas de diversos países pela
liberdade de expressão e contra a cultura do cancelamento foi publicado
pela revista norte-americana Harper’s no começo de julho e ganhou
repercussão mundial nas últimas semanas. O documento inspirou versões em
alguns países.
Na Espanha, uma carta no mesmo estilo contou com a assinatura de
intelectuais como o escritor peruano Mario Vargas Llosa. No Brasil, no
começo de agosto, intelectuais, cientistas e acadêmicos assinaram um
manifesto pela liberdade de expressão nas universidades.
“No caso da universidade, é preciso que ela seja o palco do diálogo, o
campo da livre manifestação de ideias e atue com a sabedoria
restauradora das possíveis fraturas existentes”, diz a carta brasileira.
Os autores defendem que a busca da verdade “seja um valor que possa ser
defendido e exercido por todos os componentes da academia, sem
cerceamentos, sem medos nem receios diante das mais variadas opiniões,
mesmo que sejam opostas ou contrárias a certas concepções dominantes”.
Na semana passada, de 19 a 21 de agosto, a Associação de Direito de
Família e das Sucessões (Adfas) promoveu um congresso sobre liberdade de
expressão acadêmica. "Estamos muito preocupados com o cerceamento que
vem ocorrendo quanto à liberdade de nossa expressão sobre a família,
entre outros temas relevantes, nas academias de Direito do Brasil e de
outros países", afirmou à Gazeta do Povo Regina Beatriz Tavares da
Silva, presidente da Adfas.
Consensos estabelecidos barram a liberdade de expressão
Um dos signatários do manifesto de intelectuais brasileiros pela
liberdade de expressão é André Magnelli, fundador do Ateliê de
Humanidades e doutor em sociologia pelo IESP-UERJ. Para ele, há “uma
expectativa de que as pessoas se adaptem ao senso comum acadêmico
estabelecido, sobretudo na área de humanas”, o que prejudica o trabalho
intelectual, e o manifesto tenta apontar isso.
“O ofício do intelectual, do acadêmico, do trabalho próprio de uma
universidade, é de compromisso com a verdade, com uma concepção
universal de conhecimento, de debate, de análise, de crítica, de
reflexão normativa… Diversos compromissos do intelectual e do acadêmico
acabam sendo tosados por certos consensos estabelecidos no ambiente
acadêmico”, diz.
Victor Sales Pinheiro, doutor em Filosofia pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor da Universidade Federal do
Pará (UFPA), tem estudado o tema da liberdade de expressão e já sofreu
ele próprio o ataque de um desses consensos estabelecidos.
Em 2018, a dissertação de uma orientanda sua, Dienny Riker, foi alvo
de um movimento estudantil e de comunidades LGBT quando a defesa da tese
já tinha data marcada. O grupo tentou evitar que a defesa acontecesse. O
trabalho abordava o casamento segundo a teoria da lei natural do
filósofo John Finnis, professor emérito de Oxford.
“Foi uma tentativa de censura prévia de um trabalho inédito, que não
tinha sequer sido publicado. Ou seja, tentaram silenciar a minha
orientanda sem ter lido o que ela escreveu, num ato de desonestidade
intelectual patente. Como é notório que John Finnis defende o casamento
conjugal, fundamento da família reprodutiva, tentou-se impedi-la de
concluir a sua pesquisa de filosofia do direito”, explica Pinheiro.
“Houve manifestações e ameaças contra ela e contra mim, antes,
durante e depois do processo, mas não passou disso. O direito dela de
liberdade acadêmica prevaleceu, sem que ela precisasse acionar o Poder
Judiciário. Hoje ela é mestre e doutoranda no mesmo programa, ainda sob a
minha orientação”, afirma.
Ele considera que o efeito do episódio foi “muito positivo”, porque o
fato ganhou repercussão nacional, e o trabalho acabou ganhando mais
notoriedade. Para Pinheiro, é comum na academia, hoje, que se taxem
ideias divergentes de ideológicas e anticientíficas, e há uma censura
prévia em relação a certos autores, teses ou opiniões que fogem do
consenso.
“A pesquisa acadêmica sempre se baseia em certas premissas
consideradas consensuais na comunidade científica. Quando esses
pressupostos são abalados, no contexto do pluralismo epistemológico, os
pesquisadores passam a desconfiar que o trabalho dos outros não é mais
‘científico’, mas ideológico”, diz.
Falta de liberdade na academia atinge até pesquisa sobre a liberdade de expressão acadêmica
Pedro Damazio, graduado em Comunicação Social e mestre em História
Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, tem a liberdade de expressão acadêmica como foco de suas
pesquisas atuais. Segundo ele, trata-se de “uma área de pesquisa
totalmente nova no Brasil em termos acadêmicos”.
“Tudo o que a gente tem aqui no Brasil, infelizmente, são relatos
isolados, anedotas. O que a gente sabe é que existe um problema de
liberdade de expressão na academia. Tem muita gente que reclama disso.
Agora, qual é a escala do problema, qual é o tamanho, quais são as
causas, as soluções possíveis? Tem muita pesquisa para ser feita”, diz.
Para ele, um dos motivos dessa carência pode ser o fato de que o tema
não é bem-vindo nas universidades. “Por que esse é um assunto tão pouco
explorado, se é um assunto de que todo o mundo fala? Fui descobrindo
que, de fato, esse é um dos assuntos proibidos da academia. Já tive a
experiência de tentar organizar uma palestra sobre esse assunto – e,
para isso, eu precisava do apoio de algum professor titular da
universidade – e os professores se recusarem a dar apoio porque não
queriam ser associados a esse tipo de pesquisa, porque poderia dar a
impressão de que a academia é ideologicamente dominada por um viés
político.”
A falta de liberdade para se investigar qualquer tema, sem
constrangimentos por parte da universidade, foi uma das coisas que
despertou o interesse de Damazio nesse campo de pesquisa. “Como pode um
ambiente cuja função principal é discutir ideias e, através dessa
discussão, produzir conhecimento e fornecer um espaço para o embate de
teorias, para ver quais são as mais válidas… Como pode esse ambiente não
estar proporcionando isso? Não seria justamente esse o ambiente para se
fazer isso?”, questiona.
A liberdade de expressão é “de direita”?
Nos departamentos de humanidades de algumas universidades,
professores têm torcido o nariz para o tema da liberdade de expressão,
justamente porque ele está cada vez mais vinculado a posições
consideradas “de direita”. Do ponto de vista histórico, a guinada é
surpreendente.
“É curioso que certa esquerda que na tradição da luta contra
ditaduras colocou-se como uma porta-voz das liberdades, inclusive a de
expressão, hoje em dia se deslocou, por vários fatores”, diz André
Magnelli.
Para Damazio, a etiqueta “de direita” que foi colocada no tema da
liberdade de expressão levanta “uma barreira imensa para a discussão,
porque você já é associado a um campo político”. “É muito sensível
introduzir esse tópico”, diz.
Essa crescente falta de interesse de setores progressistas pela
liberdade de expressão, segundo ele, pode ser prejudicial para os
próprios progressistas, que não passarão por aquilo que o psicólogo
norte-americano Jonathan Haidt chama de "desconfirmação
institucionalizada” – isto é, a prova de fogo da opinião contrária, que
permite entender melhor o outro lado e aperfeiçoar os argumentos para
superá-lo.
“Toda vez que você avança uma ideia na academia, é obrigação dos seus
pares procurar as falhas, os equívocos, as simplificações dessa ideia.
Só isso vai forçar você a construir o argumento mais forte possível para
a sua ideia. Se você não tem isso, se não tem contestações a suas
ideias, o risco é não ter mais controle de qualidade em relação às
ideias que surgem”, diz Damazio.
O processo da desconfirmação institucionalizada, segundo ele, passa
por admitir nas universidades até mesmo a discussão de ideias
consideradas repugnantes. “Se você não permite que ideias terríveis,
absurdas, completamente equivocadas, se expressem da maneira mais
coerente, eloquente, logicamente construída possível, se você não
permite que essas ideias se construam, como você vai saber refutar essas
ideias mais tarde? A academia oferece um ambiente seguro para discutir
ideias antes de elas saírem por aí no mundo.”
“Autoritarismo da subjetividade” e “narcisismo de massas” comprometem liberdade acadêmica, diz pesquisador
Para Magnelli, a privação da liberdade de expressão nas universidades
“é um problema pré-redes sociais, mas que na cultura das redes sociais,
de cancelamento, de rotulação, de identitarismo – tanto de esquerda
quanto de direita – se torna ainda mais agudo”.
Esses novos fenômenos acabam facilitando, segundo o sociólogo, uma
autocensura gerada pela “tirania da opinião pública” – certas visões de
mundo não podem mais sair do âmbito privado.
Ele pondera, contudo, que há também o risco de transformar a liberdade de expressão em um valor absoluto.
“Liberdade de expressão não é falar o que dá na telha, dizer o que se
quer. Você pode fazer isso emitindo uma opinião privada, mas, num
ambiente acadêmico, existe o compromisso com o saber, com a formação.
Senão, abre-se campo para negacionismos, anti-intelectualismos,
irracionalismos e tudo mais”, diz.
“É evidente que, quando eu falo isso, estou pensando muito em certos
tipos de movimentos de extrema-direita no Brasil e no mundo que têm
características negacionistas, e isso é um perigo para a democracia e os
valores civilizacionais. Isso pode ser feito por qualquer linha
ideológica como uma forma de destruir valores, mesmo que se fale em nome
de valores conservadores”, acrescenta Magnelli.
Para lutar por uma liberdade de expressão autêntica nas
universidades, é necessário, segundo ele, compartilhar o compromisso com
a verdade, com a busca de entender o mundo e com os valores normativos
comuns do ambiente acadêmico. “A defesa da liberdade de expressão tem
que vir junto com uma defesa do trabalho da cultura, do trabalho do
saber”, afirma o pesquisador.
Ele reconhece que “existe uma crise efetiva da vida universitária” e
que “a universidade foi desconstruída, nos últimos 20, 30 anos, por uma
série de problemas que fez com que a própria ideia de universidade tenha
ido, em parte, para o espaço”. Afirma, no entanto, que “muitas das
pessoas que estão criticando o mundo universitário estão expressando
apenas a sua profunda ignorância sobre as universidades” e “vomitando
preconceitos”. “Isso às vezes é marcado muito grandemente por uma
cultura de ressentimento muito forte”, observa.
Uma solução autêntica para o problema da liberdade de expressão
acadêmica, segundo Magnelli, também passa por “ter o princípio de
caridade de tentar entender o que a outra pessoa está falando e não
somente querer eliminá-la, ou combatê-la, ou tomá-la como inimiga”.
O professor enxerga, nas últimas décadas, um foco em modelos de
educação que servem para “formar pessoas para que sejam meras
trabalhadoras voltadas para o mundo útil” ou “pessoas simplesmente
voltadas para seus próprios interesses”. “Vivemos um narcisismo de
massas, uma concepção de ‘a cada um a sua verdade, a cada um a sua
moral’. A sociedade perde uma consistência própria. É uma falta de
educação para ideais de sociedade que construam pontos de vista comuns”,
afirma.
Esse “autoritarismo da subjetividade”, como define Magnelli, limita o
espaço para a liberdade de expressão nas universidades, já que a luta
por fazer prevalecer as próprias opiniões fica acima da busca autêntica
do saber.
“Tem que se repensar a educação, no sentido amplo do termo. Não é
somente a escola. Tem que se repensar a cultura. O que é se tornar um
ser humano cidadão em uma sociedade complexa como a nossa? É possível
organizar uma sociedade baseada em indivíduos autorreferentes, baseados
em si mesmos e na busca de maximizar seus resultados, sua felicidade,
que ficam na expectativa de que os outros lhes deem o reconhecimento
devido? Não dá para construir uma sociedade com base somente nisso”,
observa o professor.
“De um lado, faltam ideais transcendentais, de transcendência do
indivíduo em relação a si mesmo e, de outro lado, é necessário que se
tenha uma concepção mais científica das coisas, de apreço pela
experimentação e pela curiosidade científica. Essas questões são
importantes para sair dessa cultura de que a gente está falando aqui, em
que avança o anti-intelectualismo, avançam o mero combate e a
mentalidade autoritária.”
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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