Só o realinhamento das forças sociais pela realidade brasileira possibilitará a abolição, escreve Fernão Lara Mesquita no Estadão:
Na crise, de volta ao básico. E a do Brasil é completa.
Para abrir as portas
do 21 seria preciso decorar o resumo do século 20: “Carisma é bom pra
cinema que é a ilusão no estado da arte. Na política é um desastre,
qualquer que seja a cor da camisa”.
Mas é o caso de
refazer a estrada toda. De volta ao 16 e 17, onde tudo começa, então:
“Pensamentos, palavras ou obras”? A história das conversas do Moro com o
Deltan é isso. O “jornalismo de acesso”, que vive de grampo, estimula
esse desvio: “pensou, disse ou fez”? Parece pouco, mas esse é nada menos
que o divisor de águas entre catolicismo e protestantismo. Aceitar que
pensamentos e palavras já constituem pecado passível de condenar ao
inferno ou levar ao paraíso deságua obrigatoriamente ou na legitimação
da tortura (pensou ou não pensou?), ou na legitimação da venda de
indulgências (bastam umas tantas “rezas” prescritas pelos donos da
igreja para “desfazer” o que foi feito, inclusive o que nunca terá
remédio).
As duas coisas excluem a mera possibilidade da democracia.
A partir do 18
colhem-se os frutos: se somente a obra, ou seja, o que o sujeito de fato
fez e pode ser palpado e medido (como a roubalheira do Lula e do PT,
por exemplo), pode condenar uma alma ao inferno ou abrir-lhe as portas
do paraíso, o pensamento e as palavras deixam de ser assuntos em que o
Estado está autorizado a se meter, a felicidade passa a ser a que cada
um resolver buscar para si e a inovação e o progresso da ciência vêm
como bônus dessa forma essencial de liberdade.
No 19 e no 20 começa a
entortar: gente é o mais plasmável dos bichos. Acima de todas as forças
ele é regido pela da sobrevivência. Não é o bem ou o mal, que “podem
ser os de cada um”, é a definição do que rende punição ou recompensa que
determina para qual direção ele se vai voltar.
É por essa altura que
entramos na tapeação do “direita” versus “esquerda”, o embaralhador de
línguas que até hoje nos mantém atolados nessa babel política. Faz tudo
parecer o que não é. A desorganização da “não esquerda” (porque
“direitista” mesmo dá pra contar nos dedos de uma mão) é um clássico
universal. A principal diferença entre ela e a “pseudoesquerda” (porque
“esquerdista” de utopia mesmo, não de teta, dá pra contar nos dedos de
uma mão) é a extensão da ausência de limites. A “não esquerda” tem
patrão. Tem de bater ponto e pagar as próprias contas. Quem trabalha
full time pra político é quem é sustentado pelo Estado. É quem tem
estabilidade no emprego outorgada por político.
Os Bolsonaros nunca
foram gente aqui do mundo real perseguindo um salariozinho suado, tendo
de mostrar resultado todo santo dia pra não ir parar na fila dos
desestabilizados pela estabilidade deles. Nem o Brasil correu atrás do
Bolsonaro pai. Ele é que se jogou para dentro da carência crônica do
brasileiro que passou os últimos 34 anos na condição de criança
abandonada eleitoral, ao longo dos quais todos os bundões da “não
esquerda” se fingiam de esquerdistas porque era esse o “Abre-te Sésamo”
da caverna abarrotada de ouro do poder.
Nem mesmo os
“bolsominions” são ideológicos. Esses que ficam o dia inteiro no Twitter
destilando fel, assassinando personagens, são cópias escarradas dos
seus similares do PT. Querem a mesma coisa que eles queriam. Nem perder o
comando da caverna do Ali Babá, nem sair do “barato” corrosivo da
adrenalina do poder. E a maioria daqueles velhinhos do “Repassem sem dó”
que eles arrastam é só gente boa com medo da Venezuela tratando de
evitar mais meio século de deglutição de sapos barbudos.
Mas no mundo real foi
o “cometa” envolvendo Flávio que jogou Jair e o Coaf no colo de José
Antonio, que, na cauda dele, liberou geral. É Jair que joga pedaços da
previdenciária, da administrativa e da anticrime no colo dos contra. Nem
um único dos tiros de que todo o seu entorno está varejado veio de
fora. Fazia meses que Paulo Guedes, o solitário agente do País Real
neste governo, não dava manchete antes do último ato da previdenciária
que rolou enquanto a Primeira Família se entretinha na briga de foice no
escuro pelo comando do dinheiro do PSL.
Pelas bordas ficam os
que não têm peito de sujar diretamente as mãos, mas aceitam sem
denunciar essa regra do jogo e invocam as “instituições acima de tudo”
para impedir que ela mude. Fingir que as instituições brasileiras não
foram desenhadas para criar, servir e manter impune uma casta e que não é
isso que reduziu o Brasil à miséria é só o modo “culto” de lutar pela
permanência dessa mixórdia, seja no STF, seja nas redações. Nada a ver
com “estado de direito”. Até queima a língua dizer isso. Não dá pra
alegar inocência.
Todos eles somados
não enchem a Praça dos Três Poderes mas segundo a Constituição deles,
por eles e para eles que o povo brasileiro nunca foi chamado a
ratificar, só quem eles deixarem pode disputar o poder e impor suas
decisões a nós, que devemos permanecer desarmados e proibidos por lei de
reagir.
Esse é que é o
divisor de águas real. A parada no Brasil não é “esquerda” x “direita”, é
nobreza x plebeu, privilegiatura x meritocracia, quem tem de ganhar a
vida x quem está com a vida ganha e, na franja e não mais que na franja,
ladrões x roubados. Desacelerar o estupro não muda a natureza do crime.
Nem existe meia escravidão. Só o realinhamento das forças sociais
segundo a realidade brasileira, e não segundo as lendas e narrativas da
falecida Europa do século 20, possibilitará a verdadeira abolição. O
“golpe de nêutrons” que mata qualquer avanço da democracia sem lhe
destruir a falsa casca foi plantado lá atrás no STF. Enquanto os
escravos permanecerem divididos e engalfinhados tudo continuará, podendo
girar tranquilamente em torno do ralo da Constituição deles, por eles e
para eles exigida nos tribunais deles, por eles e para eles que todos
trabalham para manter intactos por cima dos “lados” pretensamente
abraçados, o que explica aquela bizarra rasgação de seda que não cessa
nem quando uns estão demonstrando cientificamente os canalhas que os
outros são.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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