O capitalismo lacrador se alimenta da confusão entre a natureza e o fim
dos negócios, escreve Samuel Gregg, em artigo traduzido para a Gazeta:
Uma das tendências
mais preocupantes a emergir no mundo dos negócios é o “capitalismo
consciente” (Nota do tradutor: "woke capitalism", em inglês, algo como
"capitalismo lacrador"). Seja o caso da Nike tirando das lojas tênis com
a bandeira Betsy Ross porque conselheiros-ativistas lhe disseram que a
bandeira representa a escravidão ou quase 200 CEOs de importantes
empresas assinando um anúncio de página inteira no New York Times
dizendo que as leis de restrição ao aborto são “ruins para os negócios”,
o mundo empresarial norte-americano está se alinhando rapidamente às
causas progressistas.
São vários os motivos
para isso. As pessoas envolvidas com o comércio e as que lecionam em
escolas de administração compartilham do mesmo ambiente de humanitarismo
sentimental que a gente. Não há motivo para eles se sentirem mais
suscetíveis a essa cultura. Ninguém deveria ficar surpreso ao saber que
muitos líderes empresariais consequentemente acreditam que suas empresas
devem promover agressivamente a pauta progressista, desde a ideologia
de gênero até a diminuição radical da liberdade religiosa.
Para outros, é só
mais fácil acompanhar a tendência. Por que arriscar seu emprego em Wall
Street dizendo à pessoa responsável pelos recursos humanos que o
comprometimento da empresa com a “diversidade” não inclui o pluralismo
de opiniões políticas? Em alguns casos, a “consciência corporativa” tem a
ver apenas com apaziguar os progressistas militantes. Mas se os CEOs
acham que os progressistas podem ser apaziguados é porque eles não
conhecem direito a esquerda contemporânea.
Há sinais de que
algumas empresas estão reagindo ao desejo de parte de seus consumidores
de comprarem produtos alinhados com suas posições políticas e também a
pressões de investidores institucionais que adotam causas progressistas.
Mas, como empresas como a Gillette e a Dicks Sporting Goods
descobriram, isso costuma gerar perdas financeiras como consequência da
reação de consumidores com opiniões diferentes.
Em outro nível,
contudo, o capitalismo lacrador se alimenta da confusão entre a natureza
e o fim dos negócios. Não que a iniciativa privada não tenha
responsabilidade diante do bem comum maior da sociedade. O que é preciso
entender e que (1) as empresas são associações voluntárias, (2) o
escopo de sua atividade é determinado e restrito pelo objetivo
específico da empresa enquanto associação voluntária e (3) as empresas
servem ao bem comum ao perseguirem um bem comum específico.
A finalidade mais adequada dos negócios
Qualquer organização
voluntária – seja ela uma empresa, uma ONG ou uma instituição de
caridade – tem um objetivo específico que pretende atingir. Em geral,
isso significa que ela não deveria ter objetivos outros. As coisas
geralmente dão errado quando associações voluntárias começam a perseguir
objetivos que são responsabilidade de outros grupos: não queremos que
empresas funcionem como clubes de xadrez ou vice-versa.
Para evitar isso,
precisamos identificar o bem específico atendido pelo empreendimento.
Germain Grisez dá uma definição especialmente concisa: “A finalidade
comum a toda associação voluntária é determinada pelo entendimento e
consenso dos participantes. Uma empresa com fins lucrativos é uma
associação voluntária de pessoas que cooperam as atividades específicas
em torno das quais ela se organiza a fim de alcançar vários benefícios
econômicos”. Esses benefícios são o bem alcançado sobretudo por meio de
uma associação empresarial.
Usando um exemplo
fictício, a MAG Enterprises é uma associação empresarial privada que une
investidores, proprietários, administradores e funcionários. Eles
cooperam livremente para organizar o capital monetário, a tecnologia, as
habilidades, o trabalho e as ideias a fim de alcançar certos objetivos
econômicos.
Os motivos para essas
pessoas se associarem à empresa são variados. Alguns querem aprender
mais sobre o setor específico do qual a MAG Enterprises faz parte.
Outros veem a mesma empresa como um meio de gerar renda para sua
família. Mas sejam quais forem as razões individuais para se envolverem
livremente com a empresa, todos devem estar comprometidos em gerar
aquele benefício econômico específico que justifica a existência da MAG
Enterprises. Esse bem, no final das contas, é o que os une.
Essa forma de ver os
negócios não é uma licença de um dos participantes para tratar os demais
apenas como meios de se alcançar um fim econômico. Mas ela baseia e
limita a autoridade daquelas pessoas no empreendimento que, como nota
Grisez, “têm a responsabilidade de coordenar todas as atividades que
permitem que a empresa alcance seu fim específico”.
É com base nisso, por
exemplo, que os CEOs podem demitir funcionários. Se um administrador de
nível médio não consegue desempenhar suas funções no padrão exigido,
ele compromete a capacidade da empresa de atingir seus objetivos. Embora
seja possível discutir como esse funcionário será demitido, a
autoridade do CEO de demiti-lo advém de sua responsabilidade em garantir
que a empresa alcance seu objetivo específico.
O mesmo objetivo,
contudo, também impede que o CEO direcione a empresa para alcançar
objetivos que não têm nada a ver com a missão da empresa. Claro que há
várias atividades políticas, culturais e de caridade nas quais as
pessoas associadas a uma empresa podem e até devem se envolver. Mas se
tais empreendimentos não têm relação com a capacidade da empresa de
prover um bem comum específico, esses indivíduos devem se envolver com
tais coisas como entes privados – não como representantes da empresa.
E quanto ao bem comum mais amplo?
Talvez alguém
pergunte: as empresas privadas não têm responsabilidades que vão além
desses limites? As empresas não têm deveres para com seus clientes?
Recentemente, muitos têm dito que as empresas comerciais têm obrigações
para com todos e tudo o que é afetado por suas atividades. Dependendo de
que professor de ética do negócio você ler, essas pessoas afetadas vão
desde indivíduos específicos como os clientes até causas universais como
o meio ambiente.
Qualquer um envolvido
num empreendimento deveria seguir todos os princípios morais que unem
as pessoas. Entre outras coisas, isso significa não matar, roubar e
mentir para os clientes ou outras pessoas. Eles também devem obedecer às
leis que os legisladores considerarem necessárias para o bem comum da
sociedade. Essas são as principais formas pelas quais uma empresa cumpre
seus deveres para com todos os entes a ela atrelados.
Mas a outra forma
muito precisa pela qual as empresas contribuem para o bem comum:
buscando o bem específico que as empresas são projetadas para alcançar.
O bem comum de uma
sociedade consiste de todas aquelas condições que ajudam os membros
dessa sociedade a prosperarem como deveriam. Organizações diferentes têm
responsabilidade pela criação e manutenção dessas condições variadas. O
exército, por exemplo, provê segurança nacional. O principal dever do
Judiciário é administrar justiça. As condições particulares de cada
entidade refletem sua competência específica. Portanto, juízes não
travam guerras e, exceto no que diz respeito à lei marcial, generais não
administram justiça para os civis.
Deste ponto de vista,
uma das condições fundamentais para o bem comum da sociedade alcançado
pelas empresas é a criação e o crescimento da riqueza que satisfaz as
necessidades e os desejos materiais das pessoas. Os governos podem
ajudar as empresas a alcançarem isso, por exemplo, com a construção de
obras públicas, protegendo os direitos de propriedade e mantendo
tribunais para resolverem disputas contratuais. Mas as organizações que
mais geram riqueza nas sociedades que levam a liberdade e a criatividade
humanas a sério são as empresas privadas.
Sendo claro, esse
objetivo nem sempre está claro na mente das pessoas que trabalham na
iniciativa privada. Para alguns empreendedores, trata-se da satisfação
de se criar um novo produto. Outros trabalhar na iniciativa privada
porque estão dispostos a trocar a segurança no emprego por salários mais
altos. O efeito colateral de todas essas escolhas livres, contudo, é o
de permitir que as empresas fomentem um tipo de crescimento econômico
que, com o tempo, aumenta o padrão de vida e satisfaz as necessidades
materiais da sociedade. É assim que as empresas contribuem para o bem
comum de uma sociedade."
O problema da busca pela justiça social
Dessa perspectiva,
vemos que o capitalismo consciente tira as empresas comerciais do rumo
de alcançarem seu objetivo específico. As empresas não existem para se
envolverem em exercícios marxistas de despertar da consciência, para
alterarem as estruturas familiares, para estabelecerem a paz mundial ou
para corrigirem erros históricos.
Todos os que foram
tratados injustamente merecem justiça. Grisez diz, contudo, que “a
responsabilidade de uma empresa quanto a isso está limitada às
injustiças pelas quais ela é culpada, ainda que as leis possam exigir
reparações para ajudar a empresa a cumprir seu dever para com a
sociedade como um todo e retificar outras injustiças”. O dever de
corrigir outras injustiças é de outras organizações.
O capitalismo
consciente/lacrador também prejudica a busca da empresa por seu bem
comum específico criando circunstâncias nas quais conselheiros e CEOs
podem apelar ao comprometimento da empresa para com vários objetivos
políticos a fim de justificar o emprego dos recursos corporativos de
forma a diminuir a capacidade da empresa de alcançar seu objetivo
específico. Como diz Stephen Bainbridge, “diretores com permissão para
levar em conta os interesses de todos acabam sem ter de prestar contas a
ninguém”. Neste sentido, o capitalismo consciente permite que conselhos
e CEOs excedam sua autoridade e evitem a responsabilidade por suas
ações.
O capitalismo
consciente, eu suspeito, está apenas nos seus primórdios. Os
progressistas sabem que ele é eficiente para levar empreendedores e
negócios norte-americanos a perseguirem seus objetivos. Muitos líderes
empresariais – às vezes por motivos econômicos e às vezes por causa da
ligação pessoal deles com a ideologia progressista ou falta de coragem —
acham que ele é o futuro.
Eles estão errados.
Em vez de tornarem as empresas “socialmente conscientes”, deveríamos
impedir que o horizonte ficasse nublado pelo humanitarismo sentimental.
Devemos criticar o capitalismo consciente, lembrando que as empresas
existem para alcançar fins econômicos específicos que constituem seu bem
comum também específico. A própria integridade das empresas como uma
forma distinta de associação voluntária que dá uma contribuição
específica ao bem-estar geral da sociedade está em risco.
*Samuel
Gregg é diretor de pesquisas do Acton Institute e bolsista do Centro de
Estudos de Direito e Religião da Emory University.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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