Em junho de 2018, Ricardo Lewandowski inventou exigência de aval do
Legislativo para toda e qualquer privatização, algo que não existe na
Constituição e na legislação ordinária. Editorial da Gazeta do Povo:
O presidente Jair Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes,
que tomaram posse em 1.º de janeiro, assumem seus cargos com um
ambicioso plano de redução do tamanho do Estado por meio de concessões e
privatizações. Em um cenário de déficit fiscal galopante, elas ajudam a
fazer caixa, mas são necessárias especialmente porque, ao longo de
décadas, o Estado brasileiro assumiu para si funções que a iniciativa
privada poderia realizar sem problema algum. Os planos de Bolsonaro e
Guedes, no entanto, devem esbarrar em vários obstáculos, que vão da
resistência dos funcionários das estatais até a oposição do Supremo
Tribunal Federal, que criou entraves à privatização que não existem na
legislação brasileira.
Durante a tentativa do governo Temer de privatizar subsidiárias da
Eletrobrás, algumas das quais em situação praticamente falimentar, o
Judiciário recebeu diversas ações judiciais que buscavam impedir a venda
das empresas. Ricardo Lewandowski, sorteado como relator dessas ações,
atendeu a praticamente todos os pedidos feitos por partidos políticos e
entidades representativas de funcionários. Em uma dessas ações, a Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.624, protocolada pelo PCdoB,
Lewandowski resolveu inventar uma regra segundo a qual todas as
privatizações necessitam de aprovação explícita do Poder Legislativo.
Na liminar do fim de junho de 2018, Lewandowski determinava que “a
venda de ações de empresas públicas, sociedades de economia mista ou de
suas subsidiárias ou controladas exige prévia autorização legislativa,
sempre que se cuide de alienar o controle acionário”. Para isso,
recorreu aos incisos XIX e XX do artigo 37 da Constituição Federal. Eles
tratam da criação de autarquias, empresas públicas, sociedades de
economia mista e fundações, bem como de suas subsidiárias. Em todos os
casos, o surgimento de tais entidades depende de lei específica para
tal, aprovada pelo Congresso. Lewandowski concluiu que, se é preciso
haver uma lei para criar, também é preciso haver outra lei para vender.
A analogia estabelecida pelo ministro, no entanto, tem muitas falhas,
e a própria Constituição explica o porquê. A Carta Magna não impõe para
a privatização a mesma exigência que impõe para a criação de uma
estatal ou subsidiária, e isso ocorre por um motivo bem simples: o
estado normal das coisas é que a iniciativa privada seja a responsável
por conduzir a atividade econômica. O próprio constituinte deixou isso
claro no artigo 173: “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição,
a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será
permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a
relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. A ação direta
do Estado na economia é uma exceção, não a regra. A criação de uma
estatal é uma situação extraordinária, que foge do normal; a
privatização é o retorno à ordem desejada pela Constituição, e por isso o
constituinte não quis lhe colocar embaraços.
Além disso, a Constituição e a legislação ordinária já estabelecem em
que casos uma determinada privatização precisa do crivo do Legislativo:
são as situações previstas no artigo 177 da Constituição (caso dos
monopólios da União) e no artigo 3.º da Lei 9.491/97, que criou o
Programa Nacional de Desestatização. Privatizar a Petrobras, a
Eletrobrás (mas não suas subsidiárias), o Banco do Brasil e a Caixa
Econômica Federal, por exemplo, exigiria lei específica. Se o legislador
quis citar nominalmente as empresas que precisam de um procedimento
especial para serem vendidas, é evidente que isso não se aplica às
demais estatais ou subsidiárias. Por tudo isso, chega a ser inconcebível
que a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, tenha enviado
parecer favorável à manutenção da exigência criada por Lewandowski.
Exigir o aval do Congresso Nacional para toda e qualquer privatização
já é um erro por si só, por criar entraves que o constituinte não
desejou. Mas, no Brasil de hoje, a regra de Lewandowski tem uma
agravante, pois o Legislativo federal é bastante refratário a
privatizações. As maiores resistências virão dos parlamentares da
“bancada do funcionalismo” e daqueles que se acostumaram a ver as
estatais como feudo próprio, barganhando apoio político em troca da
nomeação de apadrinhados para cargos nessas empresas.
A ADI 5.624 ainda não foi liberada pelo relator para julgamento em
plenário, e por isso não consta da pauta desenhada pelo presidente do
STF, Dias Toffoli, para o primeiro semestre de 2019. A manutenção da
vontade individual de um ministro, com a invenção de regras que o
legislador não quis, é fonte de insegurança jurídica e afasta o
investimento privado de que o Brasil necessita para crescer. Um
obstáculo desnecessário para o governo que assume agora com a intenção
de enxugar o Estado.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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