BLOG ORLANDO TAMBOSI
História do terrorismo mostra como o extremismo abandona a palavra pela ação; inteligência militar trabalhava com essa hipótese desde 2021. Marcelo Godoy para o Estadão:
Caro leitor,
Goethe
fez Fausto exasperar-se ao traduzir o Novo Testamento em seu quarto de
trabalho. O personagem se rebela logo no primeiro versículo do Evangelho
de São João: “No começo era o Verbo”. “Como dar ao verbo tão alto
apreço?”, questiona. Após várias tentativas, em que o verbo é
substituído por “sentido” e por “energia”, finalmente, Fausto chega à
conclusão: “Im Anfang war die Tat!” No Princípio era a Ação. A ação fala
mais alto do que a palavra, interrompida na tragédia pelo latido de um
cão.
O
extremista que escolhe a ação e abandona a palavra nega a própria
natureza da política, que está em dizer as coisas oportunas. Não é à toa
que Mefistófeles, o inimigo da luz, diz, ao se mostrar a Fausto pela
primeira vez, em meio à tradução do texto bíblico: “O gênio sou que
sempre nega”. A ação faz a revolução, pensava a esquerda armada dos anos 1960.
E é a ação que a extrema-direita dos anos 2020 quer usar para criar e
impor a sua visão de mundo, como fizera no passado. Quando isso
acontece, a porta para o uso da violência na política se abre. E uma de
suas manifestações é o terrorismo.
Não se trata de fenômeno desconhecido. Muitos já o estudaram, como o historiador Walter Laqueur,
autor de Uma História do Terrorismo. O uso da violência na política
esteve no centro da atuação do squadrismo fascista na Itália dos anos
1920. Foram neofascistas que colocaram a bomba que matou 85 e feriu 200
na estação de Bolonha, em 1980. Também foram responsáveis nos anos 1960 e
1970 pelas bombas em Piazza Fontana, em Milão, em Piazza della Loggia,
em Brescia, e no trem Italicus.
Extremistas
de direita alemães fuzilaram em 1922 o ministro das relações exteriores
Walter Rathenau. A Guarda de Ferro romena assassinou dois
primeiros-ministros – em 1933 e em 1939 – enquanto um simpatizante do
Narodowa Demokracja matou o presidente polonês Gabriel Narutowicz, em
1922. A Cruz Flechada húngara, a Ustase crota e o IMRO, da Macedônia,
também se envolveram em atentados. Em 1995, Timothy McVeigh explodiu um
carro-bomba em Oklahoma City, nos EUA, matando 168 pessoas.
Para Laqueur, que trabalhou no Centro de Estudos Estratégicos, em Washington, o jurista alemão Carl Schmitt
foi quem expressou de forma mais sucinta os pensamentos dos extremismo
de direita em seus escritos sobre o soldado político. A ética do Sermão
da Montanha se aplicaria somente ao inimigo privado, o inimicus, e não
ao hostis, o inimigo público. A política, para Schmitt, dizia respeito à
distinção entre amigos e inimigos. Sua república iliberal tinha como pressuposto a exclusão e não a igualdade.
“Já
se apontaram as semelhanças entre a inspiração subjacente ao terrorismo
da direita e da esquerda: a suposição de que os feitos são mais
importantes do que as palavras; a crença de que qualquer mudança seria
para melhor; o desprezo ao liberalismo e à democracia burguesa e um
sentido de missão histórica de uns poucos eleitos”, apontou Laqueur. Em
outro livro – The future of terrorism: Isis, Al-Qaeda, and the Alt-Right
– , ele escreveu que o terrorismo não é produto de psicoses ou de
irracionalidade; na verdade, é uma forma extremamente lógica e razoável
de violência política que produz resultados. Ao mesmo tempo, a presença
de agressões e do fanatismo eram de longe os principais estímulos ao
aparecimento do fenômeno.
A
obra de Laqueur pode ajudar a entender como situar historicamente a
ação do grupo que orbita a porta do quartel-general do Exército, em
Brasília. A prisão do empresário George Washington de Oliveira Sousa
mostra que ele e seus comparsas acreditam que a ação é mais importante
do que a palavra. Não é o bem comum que se busca, mas o dos poucos que
atenderam ao chamado de Jair Bolsonaro. Foi em defesa de um mito que
Sousa deixou o Pará em uma picape L200 e rumou com um arsenal para o
Distrito Federal.
Ali
alugou um apartamento no edifício Saint-Tropez, em Brasília, e escondeu
um fuzil calibre 308, duas escopetas calibre 12, três pistolas, dois
revólveres, gás, detonadores, cordel e emulsão. Gastou R$ 160 mil. E foi
frequentar o acampamento dos “patriotas”. Nas palavras do
delegado-geral da Polícia Civil do DF, Robson Cândido, o extremista
queria explodir instalações elétricas para provocar falta de energia e
dar “início ao caos que levaria à decretação do estado de sítio”. O
plano envolvia ainda a bomba no estacionamento do aeroporto. O objetivo
final era impedir a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Para membros do futuro governo, não há mais como, após a baderna e o vandalismo na capital, com a tentativa de invasão da sede da Polícia Federal
– e, agora, com a preparação de atentados terroristas contra o
aeroporto e a rede elétrica, aceitar a manutenção do acampamento em
frente ao Forte Apache. Não haveria espaço para a leniência com o
esbulho do espaço público para abrigar extremistas que planejam matar,
depredar e subverter a ordem pública.
No
passado, o poeta Laurent Tailhade teve comportamento semelhante ao
comentar a bomba do anarquista Émile Henry, lançada no Café Terminus, na
Gare Saint-Lazare, em Paris. “Qu’importe les victimes si le geste est
beau.” Que importam as vítimas, se o gesto é bonito. Henry acabou guilhotinado meses depois do atentado, em 1894,
que deixou um morto e 20 feridos, o primeiro a produzir vítimas
aleatórias na história. Seu rosto no patíbulo despertou a comoção de
George Clemenceau, que viu nele a imagem de um “Cristo atormentado”.
No
Brasil, os que defendem a legalidade da ocupação da frente dos quartéis
são os mesmos que lembram que, em 1966, a Ação Popular explodiu uma bomba no Aeroporto de Guararapes, matando duas pessoas e ferindo outras 14.
O alvo era o ministro do Exército, Arthur da Costa e Silva, então
candidato à Presidência da República. Naquele tempo, não faltavam
agressões, tirania e fanatismo no Brasil. E os atentados se
multiplicaram, à direita e à esquerda.
Postado há 25 minutes ago por Orlando Tambosi
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