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A política externa entra com força nesta eleição, vinculada a temas como corrupção, pobreza, meio ambiente e democracia. Duda Teixeira para a Crusoé:
Contrariando
a tradição brasileira, os temas de política externa ganharam um peso
excepcional nesta eleição. Esta semana, uma frase atrapalhada do
presidente Jair Bolsonaro sobre refugiadas venezuelanas levou petistas a
o acusarem de pedófilo e a pedirem o não reconhecimento do presidente
Juan Guaidó — o que implicaria a legitimação da ditadura de Nicolás
Maduro. No primeiro debate televisivo do segundo turno — que corre o
risco de ser o único — Lula gabou-se de que era convidado para as
reuniões de cúpula do extinto G8 e do G20, segundo ele porque o Brasil
“cuidava do clima” e tinha baixos índices de desmatamento.
Bolsonaro disse que Belo Horizonte não tem metrô porque o dinheiro
brasileiro foi para os ditadores venezuelanos Hugo Chávez e Nicolás
Maduro. Nos últimos sete minutos da discussão, quando falou praticamente
sozinho, o presidente citou a repressão a padres e freiras pelo ditador nicaraguense Daniel Ortega e a defesa da descriminalização da maconha e da cocaína pelo presidente colombiano Gustavo Petro.
O
cardápio é ainda mais variado. Outros assuntos que se destacaram na
semana foram o Foro de São Paulo, a assinatura de acordos internacionais
para explorar a biodiversidade da Amazônia, a regulação da mídia em Cuba,
a falta de carne e a pobreza na Argentina, a nacionalização das
refinarias da Petrobras na Bolívia, a invasão da Ucrânia e a negociação
de fertilizantes e de diesel com a Rússia para favorecer o agronegócio.
É
muita história para uma eleição que, acreditava-se, seria decidida no
campo econômico. Em meados do ano, havia um consenso de que os
brasileiros votariam pensando na inflação, na fome, na pobreza e no
desemprego. O vigor das temáticas internacionais desafia esse
entendimento. O que ainda não se pode aferir é qual será a capacidade de
esses assuntos determinarem os votos. Na campanha de 2018, o candidato
Bolsonaro associou seus rivais ao ditador venezuelano Nicolás Maduro.
Seu programa de governo prometia que o Brasil deixaria de “louvar
ditaduras assassinas”. Ele também combateu o confisco do salário dos
cubanos do Mais Médicos, a ponto de o regime castrista abandonar o
programa antes do final daquele ano. Ao final, contudo, o que conduziu o
voto foi o antipetismo, o repúdio à corrupção e a alta criminalidade.
Este
ano, a ênfase dada aos temas internacionais é maior porque Bolsonaro
espertamente os tem conectado a questões internas. Toda vez que lembra
das prisões de padres pelo ditador Daniel Ortega, na Nicarágua, o
presidente dá fôlego para as fake news que circularam entre os
evangélicos dizendo que Lula fechará igrejas se eleito. Hoje, um em cada
três evangélicos acredita nisso, segundo a Quaest. Ao lembrar da
proposta do colombiano Gustavo Petro de descriminalizar a maconha e a
cocaína, Bolsonaro quer que os 70% dos brasileiros que são contra a
legalização das drogas rejeitem o PT — partido que não tem erguido essa
bandeira porque sabe da sua impopularidade. “Bolsonaro tem promovido uma
intersecção entre temas de política externa com a agenda conservadora
de costumes. Com isso, temas que não deveriam ter muito peso acabam
ganhando relevância, por causa de uma polarização artificial”, diz o
economista e embaixador Sergio Florencio.
O
presidente também gosta de ressaltar as crises em países próximos para
incutir nos eleitores o medo do comunismo. O Brasil, segundo ele,
poderia se tornar uma Argentina ou, pior ainda, uma Venezuela. A
estratégia é ridicularizada nas redes sociais por diversas pessoas,
incluindo muitas que não são petistas, que dizem que essa é uma
possibilidade remota, uma fantasia da cabeça de Bolsonaro. O que não há
como saber é se essa chance hoje é baixa porque existe um rechaço a ela
na sociedade brasileira, ou se o risco seria pequeno de qualquer
maneira. De qualquer forma, a realidade concreta de outros países
governados pela esquerda serve como um alerta dessa possibilidade, e a
campanha do presidente explora à exaustão o tema. “Este ano, temos visto
um aumento da pauta internacional, com atenção para o que ocorre nos
países latino-americanos, em especial Argentina, Nicarágua e Venezuela,
com governos de esquerda, todos enfrentando crises econômicas, sociais e
humanitárias agudas”, diz Dorival Guimarães Pereira Jr., professor de
relações internacionais do Ibmec, em Belo Horizonte.
Lula,
quando é acusado de ser amigo de ditadores, não busca se desvencilhar
deles. Indagado por Bolsonaro, que o acusou de ser um “apaixonado” por
Daniel Ortega, o petista respondeu que sentiu “muito orgulho de no dia
19 de julho de 1980 ter participação da comemoração da Revolução
Sandinista (de Ortega), que derrubou um ditador chamado Somoza”. Foi uma
confirmação daquilo que Bolsonaro tinha dito pouco antes. Normalmente, a
saída do PT, quando surge essa crítica, tem sido a de defender a
soberania e a autodeterminação dos povos. A ideia é a de que cada povo
deve se virar com os seus próprios tiranos, sem interferência externa.
“Se Daniel Ortega está errando, que o povo o puna”, disse Lula. O que o
petista ignora, ou faz que ignora, é que ditaduras reprimem
violentamente a oposição e distorcem as regras do jogo, inviabilizando
qualquer troca de poder. Em situações como essa, a pressão externa pode
ser a única maneira de mudar alguma coisa, como obrigar Ortega a se
sentar na mesa de negociação. A sugestão de Lula ainda desconsidera a
noção de que direitos humanos são universais e devem ser defendidos por
todos, se preciso com a atuação das organizações internacionais.
Também
não se ouviu da parte de Lula qualquer crítica à ditadura venezuelana. O
ex-ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, cotado para comandar a
diplomacia em um possível mandato petista, defende o reconhecimento da
ditadura de Nicolás Maduro. Na terça, 18, Bolsonaro gravou um vídeo ao
lado da embaixadora venezuelana María Teresa Belandria pedindo desculpas
após falas que indicavam que refugiadas venezuelanas estariam se
arrumando para se prostituir. Belandria reporta ao presidente Juan
Guaidó, reconhecido pelo Brasil. Após a divulgação das desculpas,
petistas imediatamente foram às redes sociais para atacar Guaidó e
questionar sua legitimidade. Para os seguidores de Lula, só Maduro, que
está sendo investigado por crimes contra a humanidade pelo Tribunal
Penal Internacional, pode representar a Venezuela. “Ao ser criticado,
Lula fica limitado ao responder a essas questões porque, de fato, o PT
se aliou a essas execráveis ditaduras”, diz o embaixador Paulo Roberto
de Almeida. “Como não se sabe se numa próxima presidência de Lula esse
apoio continuaria, sua campanha tem dificuldade para se descolar desse
legado extremamente negativo.”
Quando
trata de diplomacia, o petista toca em temas ambientais e de direitos
humanos, como a proteção aos indígenas. Lula também tem ressaltado o
isolamento do presidente, que hoje conta com raros aliados no exterior.
Na campanha de 2018, o programa de Bolsonaro prometia não desprezar
“democracias importantes como EUA, Israel e Itália“. O candidato então
tinha afinidade com o presidente americano Donald Trump, com o
primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e com o
vice-primeiro-ministro italiano Matteo Salvini. A derrota dos três em
eleições nacionais derrubou as pontes que uniam seus países ao Brasil.
Na tentativa de não tornar-se totalmente irrelevante no cenário
internacional, Bolsonaro se aproximou de quem se dispôs a aparecer a seu
lado, como o húngaro Viktor Orbán, o polonês Andrej Duda, o russo
Vladimir Putin e monarcas árabes.
Daria
perfeitamente para criticar Bolsonaro sobre suas amizades com
autocratas e ditadores. Lula já o chamou de “fascista” várias vezes, mas
não vai além disso. Primeiro, porque seria uma contradição enorme que
ele, apoiando os ditadores na América Latina, fizesse tal acusação a
outra pessoa. Segundo, porque aquele que é o autocrata que mais tem
infernizado o mundo, o russo Putin, recebeu o apoio dos dois políticos
que disputam o segundo turno. Quando Putin concentrava soldados e
tanques perto da fronteira com a Ucrânia, Bolsonaro foi para o Kremlin
dizer que o Brasil se solidarizava com a Rússia. Depois de iniciado
conflito, ele frisou o “carinho de Putin pelos brasileiros“. Por sua
vez, Lula disse em entrevistas para jornalistas que o presidente
ucraniano Volodymyr Zelensky quis a guerra
e tentou botar a culpa de tudo na Organização do Tratado do Atlântico
Norte, a Otan. Por suas falas, o brasileiro foi incluído em uma lista
feita pelos ucranianos de pessoas que fazem propaganda pró-Rússia.
Passadas
as discussões de campanha, qualquer um que se torne o próximo
presidente terá de enfrentar desafios na área externa. Se Lula ganhar,
qualquer gesto benevolente em relação a autocratas de esquerda provocará
forte reação em parte da sociedade, que desenvolveu alguns anticorpos
nos últimos anos. O antiamericanismo arraigado no PT retornará
provavelmente com Celso Amorim ou algum indicado seu no comando do
Itamaraty, fortalecendo os laços com Venezuela, Irã, China e Rússia. Nos
documentos protocolados no Tribunal Superior Eleitoral, o TSE, o PT
propõe reconstruir “a cooperação internacional Sul-Sul com América
Latina e África” e “fortalecer novamente o Mercosul, a Unasul, a Celac e
os Brics”. Esse último bloco, aliás, foi criado na gestão de Amorim e
tem se tornado um braço da diplomacia chinesa para projetar influência
em países em desenvolvimento e se contrapor aos Estados Unidos. O
Partido Comunista da China tem instrumentalizado o Brics, e quanto maior
for esse grupo, melhor para Pequim. Na quarta, 19, Amorim defendeu a
inclusão da Argentina na turma.
Bolsonaro,
caso ganhe um segundo mandato, deverá seguir em uma linha parecida com a
atual. Seu repúdio aos governos de esquerda não aliviará o isolamento
do Brasil na América Latina, onde presidentes de esquerda têm vencido
eleições seguidas. A manutenção das políticas ambientais deve fazer com
que o país siga como um pária internacional, com americanos e europeus
reclamando esporadicamente dos altos índices de desmatamento.
Uma
pergunta que fica para o futuro é se o fervor ideológico da atual
campanha poderá ser transferido para o Itamaraty em um segundo mandato
de Bolsonaro. O risco é baixo. Desde março do ano passado, o governo
atenuou sua posição com a substituição do chanceler Ernesto Araújo, que
atacava o “comunavírus” e o “globalismo”, por Carlos França, um
diplomata discreto e obediente. A mudança acalmou o Congresso e o
agronegócio, que tem na China um dos principais destinos de suas
exportações. Na próxima legislatura, a boa votação dos partidos
oficialistas deve reduzir a dependência do governo do Centrão e dar-lhe
mais margem de manobra, mas a situação não deve se alterar. “No geral, o
Congresso Nacional sempre foi secundário na definição e proposição de
linhas de política externa”, diz João Victor Motta, especialista em
relações internacionais e pesquisador do Observatório do Regionalismo.
“O limite da ideologização da política externa do Bolsonaro continuará
dependendo de algumas elites econômicas internas, como o agronegócio e
os industriais exportadores.” Em menos de dez dias, os brasileiros
saberão para onde essa história vai.
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