sábado, 22 de outubro de 2022

O peso do mundo nas eleições de 2022

 BLOG  ORLANDO  TAMBOSI



A política externa entra com força nesta eleição, vinculada a temas como corrupção, pobreza, meio ambiente e democracia. Duda Teixeira para a Crusoé:


Contrariando a tradição brasileira, os temas de política externa ganharam um peso excepcional nesta eleição. Esta semana, uma frase atrapalhada do presidente Jair Bolsonaro sobre refugiadas venezuelanas levou petistas a o acusarem de pedófilo e a pedirem o não reconhecimento do presidente Juan Guaidó — o que implicaria a legitimação da ditadura de Nicolás Maduro. No primeiro debate televisivo do segundo turno — que corre o risco de ser o único — Lula gabou-se de que era convidado para as reuniões de cúpula do extinto G8 e do G20, segundo ele porque o Brasil “cuidava do clima” e tinha baixos índices de desmatamento. Bolsonaro disse que Belo Horizonte não tem metrô porque o dinheiro brasileiro foi para os ditadores venezuelanos Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Nos últimos sete minutos da discussão, quando falou praticamente sozinho, o presidente citou a repressão a padres e freiras pelo ditador nicaraguense Daniel Ortega e a defesa da descriminalização da maconha e da cocaína pelo presidente colombiano Gustavo Petro.

O cardápio é ainda mais variado. Outros assuntos que se destacaram na semana foram o Foro de São Paulo, a assinatura de acordos internacionais para explorar a biodiversidade da Amazônia, a regulação da mídia em Cuba, a falta de carne e a pobreza na Argentina, a nacionalização das refinarias da Petrobras na Bolívia, a invasão da Ucrânia e a negociação de fertilizantes e de diesel com a Rússia para favorecer o agronegócio.

É muita história para uma eleição que, acreditava-se, seria decidida no campo econômico. Em meados do ano, havia um consenso de que os brasileiros votariam pensando na inflação, na fome, na pobreza e no desemprego. O vigor das temáticas internacionais desafia esse entendimento. O que ainda não se pode aferir é qual será a capacidade de esses assuntos determinarem os votos. Na campanha de 2018, o candidato Bolsonaro associou seus rivais ao ditador venezuelano Nicolás Maduro. Seu programa de governo prometia que o Brasil deixaria de “louvar ditaduras assassinas”. Ele também combateu o confisco do salário dos cubanos do Mais Médicos, a ponto de o regime castrista abandonar o programa antes do final daquele ano. Ao final, contudo, o que conduziu o voto foi o antipetismo, o repúdio à corrupção e a alta criminalidade.

Este ano, a ênfase dada aos temas internacionais é maior porque Bolsonaro espertamente os tem conectado a questões internas. Toda vez que lembra das prisões de padres pelo ditador Daniel Ortega, na Nicarágua, o presidente dá fôlego para as fake news que circularam entre os evangélicos dizendo que Lula fechará igrejas se eleito. Hoje, um em cada três evangélicos acredita nisso, segundo a Quaest. Ao lembrar da proposta do colombiano Gustavo Petro de descriminalizar a maconha e a cocaína, Bolsonaro quer que os 70% dos brasileiros que são contra a legalização das drogas rejeitem o PT — partido que não tem erguido essa bandeira porque sabe da sua impopularidade. “Bolsonaro tem promovido uma intersecção entre temas de política externa com a agenda conservadora de costumes. Com isso, temas que não deveriam ter muito peso acabam ganhando relevância, por causa de uma polarização artificial”, diz o economista e embaixador Sergio Florencio.


O presidente também gosta de ressaltar as crises em países próximos para incutir nos eleitores o medo do comunismo. O Brasil, segundo ele, poderia se tornar uma Argentina ou, pior ainda, uma Venezuela. A estratégia é ridicularizada nas redes sociais por diversas pessoas, incluindo muitas que não são petistas, que dizem que essa é uma possibilidade remota, uma fantasia da cabeça de Bolsonaro. O que não há como saber é se essa chance hoje é baixa porque existe um rechaço a ela na sociedade brasileira, ou se o risco seria pequeno de qualquer maneira. De qualquer forma, a realidade concreta de outros países governados pela esquerda serve como um alerta dessa possibilidade, e a campanha do presidente explora à exaustão o tema. “Este ano, temos visto um aumento da pauta internacional, com atenção para o que ocorre nos países latino-americanos, em especial Argentina, Nicarágua e Venezuela, com governos de esquerda, todos enfrentando crises econômicas, sociais e humanitárias agudas”, diz Dorival Guimarães Pereira Jr., professor de relações internacionais do Ibmec, em Belo Horizonte.

Lula, quando é acusado de ser amigo de ditadores, não busca se desvencilhar deles. Indagado por Bolsonaro, que o acusou de ser um “apaixonado” por Daniel Ortega, o petista respondeu que sentiu “muito orgulho de no dia 19 de julho de 1980 ter participação da comemoração da Revolução Sandinista (de Ortega), que derrubou um ditador chamado Somoza”. Foi uma confirmação daquilo que Bolsonaro tinha dito pouco antes. Normalmente, a saída do PT, quando surge essa crítica, tem sido a de defender a soberania e a autodeterminação dos povos. A ideia é a de que cada povo deve se virar com os seus próprios tiranos, sem interferência externa. “Se Daniel Ortega está errando, que o povo o puna”, disse Lula. O que o petista ignora, ou faz que ignora, é que ditaduras reprimem violentamente a oposição e distorcem as regras do jogo, inviabilizando qualquer troca de poder. Em situações como essa, a pressão externa pode ser a única maneira de mudar alguma coisa, como obrigar Ortega a se sentar na mesa de negociação. A sugestão de Lula ainda desconsidera a noção de que direitos humanos são universais e devem ser defendidos por todos, se preciso com a atuação das organizações internacionais.

Também não se ouviu da parte de Lula qualquer crítica à ditadura venezuelana. O ex-ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, cotado para comandar a diplomacia em um possível mandato petista, defende o reconhecimento da ditadura de Nicolás Maduro. Na terça, 18, Bolsonaro gravou um vídeo ao lado da embaixadora venezuelana María Teresa Belandria pedindo desculpas após falas que indicavam que refugiadas venezuelanas estariam se arrumando para se prostituir. Belandria reporta ao presidente Juan Guaidó, reconhecido pelo Brasil. Após a divulgação das desculpas, petistas imediatamente foram às redes sociais para atacar Guaidó e questionar sua legitimidade. Para os seguidores de Lula, só Maduro, que está sendo investigado por crimes contra a humanidade pelo Tribunal Penal Internacional, pode representar a Venezuela. “Ao ser criticado, Lula fica limitado ao responder a essas questões porque, de fato, o PT se aliou a essas execráveis ditaduras”, diz o embaixador Paulo Roberto de Almeida. “Como não se sabe se numa próxima presidência de Lula esse apoio continuaria, sua campanha tem dificuldade para se descolar desse legado extremamente negativo.”

Quando trata de diplomacia, o petista toca em temas ambientais e de direitos humanos, como a proteção aos indígenas. Lula também tem ressaltado o isolamento do presidente, que hoje conta com raros aliados no exterior. Na campanha de 2018, o programa de Bolsonaro prometia não desprezar “democracias importantes como EUA, Israel e Itália“. O candidato então tinha afinidade com o presidente americano Donald Trump, com o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e com o vice-primeiro-ministro italiano Matteo Salvini. A derrota dos três em eleições nacionais derrubou as pontes que uniam seus países ao Brasil. Na tentativa de não tornar-se totalmente irrelevante no cenário internacional, Bolsonaro se aproximou de quem se dispôs a aparecer a seu lado, como o húngaro Viktor Orbán, o polonês Andrej Duda, o russo Vladimir Putin e monarcas árabes.


Daria perfeitamente para criticar Bolsonaro sobre suas amizades com autocratas e ditadores. Lula já o chamou de “fascista” várias vezes, mas não vai além disso. Primeiro, porque seria uma contradição enorme que ele, apoiando os ditadores na América Latina, fizesse tal acusação a outra pessoa. Segundo, porque aquele que é o autocrata que mais tem infernizado o mundo, o russo Putin, recebeu o apoio dos dois políticos que disputam o segundo turno. Quando Putin concentrava soldados e tanques perto da fronteira com a Ucrânia, Bolsonaro foi para o Kremlin dizer que o Brasil se solidarizava com a Rússia. Depois de iniciado conflito, ele frisou o “carinho de Putin pelos brasileiros“. Por sua vez, Lula disse em entrevistas para jornalistas que o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky quis a guerra e tentou botar a culpa de tudo na Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan. Por suas falas, o brasileiro foi incluído em uma lista feita pelos ucranianos de pessoas que fazem propaganda pró-Rússia.

Passadas as discussões de campanha, qualquer um que se torne o próximo presidente terá de enfrentar desafios na área externa. Se Lula ganhar, qualquer gesto benevolente em relação a autocratas de esquerda provocará forte reação em parte da sociedade, que desenvolveu alguns anticorpos nos últimos anos. O antiamericanismo arraigado no PT retornará provavelmente com Celso Amorim ou algum indicado seu no comando do Itamaraty, fortalecendo os laços com Venezuela, Irã, China e Rússia. Nos documentos protocolados no Tribunal Superior Eleitoral, o TSE, o PT propõe reconstruir “a cooperação internacional Sul-Sul com América Latina e África” e “fortalecer novamente o Mercosul, a Unasul, a Celac e os Brics”. Esse último bloco, aliás, foi criado na gestão de Amorim e tem se tornado um braço da diplomacia chinesa para projetar influência em países em desenvolvimento e se contrapor aos Estados Unidos. O Partido Comunista da China tem instrumentalizado o Brics, e quanto maior for esse grupo, melhor para Pequim. Na quarta, 19, Amorim defendeu a inclusão da Argentina na turma.

Bolsonaro, caso ganhe um segundo mandato, deverá seguir em uma linha parecida com a atual. Seu repúdio aos governos de esquerda não aliviará o isolamento do Brasil na América Latina, onde presidentes de esquerda têm vencido eleições seguidas. A manutenção das políticas ambientais deve fazer com que o país siga como um pária internacional, com americanos e europeus reclamando esporadicamente dos altos índices de desmatamento.

Uma pergunta que fica para o futuro é se o fervor ideológico da atual campanha poderá ser transferido para o Itamaraty em um segundo mandato de Bolsonaro. O risco é baixo. Desde março do ano passado, o governo atenuou sua posição com a substituição do chanceler Ernesto Araújo, que atacava o “comunavírus” e o “globalismo”, por Carlos França, um diplomata discreto e obediente. A mudança acalmou o Congresso e o agronegócio, que tem na China um dos principais destinos de suas exportações. Na próxima legislatura, a boa votação dos partidos oficialistas deve reduzir a dependência do governo do Centrão e dar-lhe mais margem de manobra, mas a situação não deve se alterar. “No geral, o Congresso Nacional sempre foi secundário na definição e proposição de linhas de política externa”, diz João Victor Motta, especialista em relações internacionais e pesquisador do Observatório do Regionalismo. “O limite da ideologização da política externa do Bolsonaro continuará dependendo de algumas elites econômicas internas, como o agronegócio e os industriais exportadores.” Em menos de dez dias, os brasileiros saberão para onde essa história vai.
 
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