A lição do ministro do STF
Os direitos não podem ser pautados pelas preferências políticas. Fernando Schüler para a revista Veja:
Em
meio ao barulho eleitoral, uma decisão do ministro André Mendonça
passou algo despercebida neste país desatento. Mas não deveria. Trata-se
da matéria do UOL sobre as supostas “compras em espécie” de imóveis por
parte dos Bolsonaro,
censurada por um desembargador do Distrito Federal. Os argumentos do
desembargador diziam que a matéria fazia “ilações”, que não era possível
concluir sobre a compra dos imóveis aquilo que a matéria concluía, que
ela usava dados de uma investigação anulada e que, portanto, o portal
havia “excedido o direito de livre informar”. Se ficasse por isso mesmo,
seria mais do mesmo. Cansei de escrever sobre o inquérito das fake news
e sobre magistrados mandando censurar ou mesmo prender em nome da
“verdade” e da “democracia”. Dessa vez a coisa foi diferente. Uma
matéria claramente de “oposição” foi garantida por nosso ministro dito
como o “mais bolsonarista” de todos, como li em um jornal. Se isso não
chama a atenção de ninguém país afora, digo que deveria.
A
decisão do ministro Mendonça traz uma boa e uma má notícia. Ele
fundamenta sua resolução na icônica ação que, nos idos de 2009, acabou
com a “lei de imprensa” no Brasil. Para quem não se lembra, a lei de
imprensa era um resquício do regime militar, e foi devidamente extinta
pelo STF sob a ideia de que nossa Constituição consagra “a plena
liberdade de imprensa, proibitiva de qualquer tipo de censura prévia”.
Palavras que hoje parecem ter se perdido na poeira da guerra política.
No Brasil atual, a censura prévia corre solta e boa parte da sociedade
dá de ombros. Luciano Hang, o empresário dono da Havan, está banido das
redes sociais. Alguém faz ideia do porquê? Ele está “previamente” banido
de seu direito à expressão. As coisas não funcionam mais como à época
da ditadura, em que Chico Buarque deveria enviar previamente uma letra
para aprovação do censor. Nos tornamos mais eficientes: proíbe-se que o
cidadão se expresse antes da análise de qualquer coisa. É a censura
prévia fast track, mais direta e eficiente.
Na
parte final de sua decisão, André Mendonça dá o recado mais importante.
Ele diz que, em um “estado democrático de direito”, a liberdade de
expressão é devida “aos brasileiros de todos os espectros
político-ideológicos”. Diz que a censura não tem respaldo na
Constituição, “por melhores que sejam as intenções”, e que tudo é ainda
mais grave se as restrições vierem do Poder Judiciário, que deveria
zelar pelas garantias fundamentais, e não o contrário. São três ideias
simples, que não deveriam causar surpresa nenhuma. Ocorre que, do jeito
que andamos, elas têm um sabor amargo. Revelam que há uma divergência
profunda sobre a liberdade de expressão em nosso mais alto tribunal,
sendo provável que a visão do ministro Mendonça seja minoritária. É
possível que os demais ministros tomassem a mesma decisão que tomou
André Mendonça, mas por razões inteiramente distintas. Poderiam levantar
a censura sobre essa matéria, mas não aceitar a tese apresentada por
Mendonça: de que não cabe censura, nem tutela do Estado sobre a
“verdade”, e que a liberdade de expressão é devida aos brasileiros,
sejam eles “conservadores” ou “progressistas”, adeptos dessa ou daquela
visão de mundo.
No
Brasil recente, permitimos que a nossa democracia escorregasse
exatamente na direção oposta dessa visão. Aceitamos que liberdades
individuais muito elementares fossem danificadas a pretexto da “defesa
da democracia” e do “combate às fake news”. Assistimos passivamente ao
surgimento, no coração da República, do embrião de um Estado policial
inteiramente estranho a nossa jovem tradição democrática. E o pior: com o
respaldo de boa parte dos próprios meios de imprensa, inebriados pela
polarização política. Em um país, como bem disse o mestre Sérgio
Buarque, avesso às “abstrações do liberalismo” e onde a democracia
“sempre foi um lamentável mal-entendido”.
Vai
aí o lado obscuro de toda essa história. Ele diz respeito a como a
decisão do ministro foi tratada na sociedade. Há coisa de dois meses, em
uma outra decisão, dessa vez tomada pelo ministro Alexandre de Moraes,
foram censurados materiais mencionando a delação premiada de Marcos
Valério, com referências a uma suposta relação entre o PT e o PCC. À
época, observei que aquela resolução estabelecia uma premissa:
colocando-se como “juiz da verdade, nesse caso, o Estado se põe, por
efeito lógico, como juiz da verdade em qualquer caso”. Foi exatamente
isso que o desembargador de Brasília fez: ele julgou a “veracidade” da
matéria. Exerceu seu poder de tutela, sugerindo que o portal não poderia
ter feito a “ilação” que fez. No fundo, está aí o dilema brasileiro.
Desejamos ou não o Estado de tutela? Ou somos apenas malandros, achando
ótimo que esse poder seja exercido só contra os indesejáveis, os
errados, os do “outro lado”?
Talvez
seja o caso. Nesse episódio triste, grupos de imprensa e opinião que
passaram os últimos anos salivando de alegria com toda sorte de censura
contra os “alvos corretos”, repetindo catatonicamente que “liberdade de
expressão não é um direito absoluto”, subitamente acordaram. Num passe
de mágica, lembraram que a “liberdade de expressão é um dos pilares
centrais da democracia”. Tudo que haviam solenemente esquecido, quando o
“patrimônio imaterial representado pela liberdade de pensamento” dos
outros, casualmente seus inimigos, estava escorrendo pelo ralo.
Tempos
atrás li um texto provocativo de Anne Applebaum falando da guerra e das
ameaças às democracias liberais mundo afora e perguntando se não
relaxamos. Se não nos convencemos cedo demais de que as democracias
liberais estavam consolidadas e de que não havia mais perigo relevante
no horizonte. Ela conclui dizendo não haver nada “natural” em uma ordem
liberal. E que teremos de “lutar ferozmente pelos valores e pelas
esperanças do liberalismo se quisermos que nossas sociedades abertas
continuem existindo”. O texto resume à perfeição o nosso problema:
enquanto não entendermos que o mundo dos direitos não admite
seletividade, não pode ser pautado pela preferência por este ou aquele
lado da briga política, que não cabe ao Estado tutelar a verdade, não
teremos uma República digna desse nome. Daí o aprendizado que podemos
ter da decisão do ministro André Mendonça.
Por
esta semana, uma matéria no The New York Times se perguntava se, a
pretexto da “defesa da democracia”, não terminamos atravessando o samba
no Brasil e corroendo as bases de nosso estado de direito. A matéria é
gentil. Faz tempo que estamos cruzando uma linha que jamais deveríamos
ter cruzado. Dando de ombros a valores que não foram dados pela
natureza, que desafiam nossa passionalidade, nossa propensão ao
tribalismo e à “vontade de domínio”, na expressão daquele filósofo
alemão que não tinha lá grande apreço pela democracia. Valores pelos
quais muita gente lutou, no passado recente, e que mesmo por isso
deveríamos tratar com um pouco mais de cuidado.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 5 de outubro de 2022, edição nº 2809
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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