Um popperiano teria a humildade de dizer “eu não sei” a respeito de muitas coisas relativas ao Fórum Econômico Mundial. O pedantismo dos letrados, ou um comodismo igual ao dos canadenses, torna incômodo esse tipo de apreciação. Bruna Frasolla para a Gazeta do Povo:
Recentemente pediram a Jordan Peterson
que explicasse como Justin Trudeau e ele olharam para os caminhoneiros
canadenses e explicasse como ambos viram coisas tão diferentes. Afinal,
Jordan Peterson pedira aos caminhoneiros que mantivessem a cabeça
erguida, pois são um exemplo para o mundo, enquanto que Justin Trudeau
dissera que “isso tem que acabar”, porque os caminhoneiros agrediam a
população canadense ao exibirem suásticas e bandeiras dos confederados.
Peterson respondeu que a diferença entre ambos residia em ele próprio
ser honesto e Trudeau ser um mentiroso; um narcisista que montou uma
personagem e diz coisas nas quais não acredita. O que o intrigava era:
como Trudeau ainda tinha apoio após decretar um estado de emergência que deixava o país indiscernível de uma ditadura.
Peterson
foi ao Twitter ver o que os apoiadores de Trudeau pensavam: eles
acreditavam que os caminhoneiros eram subsidiados por russos e
trumpistas com o fito de acabar com a democracia canadense. Muito bem, e
por que eles acreditavam nisso? Por que os russos e os trumpistas
estariam tão interessados no Canadá assim? De todo modo, Trudeau
resolveu o problema, isto é, salvou a democracia, sentando porrada em
todo mundo, congelando contas bancárias e suspendendo liberdades civis.
Por que os canadenses acreditam nessa coisa sem pé nem cabeça? Peterson
comenta: “Eu não sei qual é o tipo de mundo no qual eu existo, onde
essas coisas estão acontecendo. […] Por que os canadenses engolem isso?
Penso que eles se defrontam com uma escolha dura. Em meu país, por 150
anos, podíamos confiar nas instituições básicas: podíamos no governo
(não importava o partido político no comando), podíamos confiar nos
partidos políticos […], podíamos confiar na mídia […]. Nada disso é
verdade agora, então os canadenses são convidados a fazer uma escolha
dura: […] ou todas as suas instituições estão quase irrecuperavelmente
corrompidas, ou os caminhoneiros foram financiados por republicanos de
direita dos Estados Unidos. Ora, ambas são absurdas. Dá para escolher a
que não abale todo o seu senso de segurança. Então eu acho que é isso o
que a maioria dos canadenses fez”.
O mundo em que vivemos
Todo
o imbróglio dos caminhoneiros foi iniciado pela pandemia. Pensando bem,
todo mundo no Ocidente teve que fazer uma escolha parecida com a dos
canadenses. No começo da pandemia, quando surgiu a questão da
cloroquina, para mim mal era uma questão. Recém eleito, Bolsonaro ficava
numa babação pra cima de Trump que me matava de vergonha. Além disso,
políticos de um modo geral gostam de dar soluções simples que lhe
dispensem da tarefa de trabalhar. Assim, quando Bolsonaro apareceu
defendendo a cloroquina, achei que fosse mero imitador do extravagante
homem laranja. Com o desenrolar dos acontecimentos, porém, me vi
obrigada a ficar com a hipótese mais dura do mundo cão. No caso da
cloroquina em particular, este jornal mostrou que
os cientistas da Fiocruz empenhados em desacreditá-la são caso de
polícia. Isso é mundo cão, e isso é o mundo em que vivemos.
Os
canadenses têm uma amostra mais privilegiada do que nós, brasileiros,
do que seja mundo cão. Desde a pandemia, o Canadá considera que a vida
na pobreza é indigna e portanto os que padecem desse mal podem solicitar a eutanásia
ao Estado. Os canadenses temem tanto os republicanos dos EUA, mas são
os democratas que agora apoiam o uso da escola para induzir doenças
mentais em crianças e em seguida castrá-las.
Enquanto
isso, o Ocidente se julga muito virtuoso e aponta o dedo para a Rússia,
dizendo que Pútin é satanás na terra. É preciso escolher o lado da
“democracia” e apoiar um Estado cujo Exército inclui um batalhão
abertamente neonazista. É humanitário apoiar a intervenção sobre as
regiões russas étnicas para que os neonazistas ucranianos continuem
tomando conta delas, mesmo que volta e meia apareçam imagens de gente
queimada viva em cruz. Se uma ONG de direitos humanos que denunciou o
“massacre do Jacarezinho” neste Brasil de Bolsonaro só denuncia a
Rússia, devemos acreditar que a democracia ucraniana viceja. E que
massacre étnico e neonazismo estatal sejam compatíveis com essa
democracia defendida pelo Ocidente de hoje. Não é de admirar, já que
eutanasiar a população improdutiva e estimular aborto em minorias
raciais é coisa de nazista mesmo.
Explicação psicológica das teorias conspiratórias
Mas
deixemos a Ucrânia quieta; vamos focar nos nossos letrados. Há algum
tempo vimos que não há nenhuma correlação entre ser um erudito
autodeclarado liberal conservador e apoiar as coisas mais iliberais e
menos conservadoras. Hoje quero notar que não há nenhuma correlação
entre ter lido Popper e saber tratar de teorias da conspiração.
Todo
liberal pedante gosta de citar A Sociedade Aberta e os seus Inimigos,
de Karl Popper. Nela, o epistemólogo trata de ciência social; mais
precisamente, expõe sua tese segundo a qual Platão e Hegel são os
grandes patronos dos inimigos da sociedade aberta, a qual ele define
como a sociedade em que se pode mudar de governante em paz (uma
democracia cujas eleições podem ser fraudadas impunemente não é uma
sociedade aberta, portanto).
Entre
os inimigos teóricos da sociedade aberta estariam as teorias
conspiratórias da sociedade. Uma teoria conspiratória da sociedade se
embasa n’ “a opinião de que a explicação de um fenômeno social consiste
na descoberta dos homens ou grupos que estão interessados na ocorrência
desse fenômeno […] e que planejaram e conspiraram para que ele se
desse”. O marxismo vulgar é uma teoria desse tipo, já que o professor de
sociologia aponta os culpados e dá a investigação por encerrada, logo
passando às diatribes (Popper distinguia o marxismo vulgar do marxismo
original. Para ele, Marx tinha uma hipótese capaz de ser levada a sério.
Quando suas previsões se mostraram falhas, surgiu uma pseudociência
cujo propósito é provar que Marx está certo mesmo estando tendo errado
tudo).
Popper
acreditava que as teorias conspiratórias surgem naturalmente porque o
homem tende a presumir intencionalidade onde não há. A guerra de Troia,
para os gregos, podia ser explicada pelas intrigas do Olimpo. Até coisas
inanimadas, como a falta ou excesso de chuva, são interpretadas como
resultado de alguma divindade ofendida ou revoltada. Assim, quando essa
tendência inata a supor intencionalidade aparece na sociedade
civilizada, surgem as teorias sociais conspiratórias. O marxismo era o
exemplo mais patente da época dele, e hoje há o “pacto narcísico da
branquitude” que opera o “racismo estrutural”.
A
tentação das teorias conspiratórias seria fatal ao cientista social por
violar o propósito principal das ciências sociais: estudar as
consequências não-intencionais da ação humana. Por exemplo: um cientista
que analisa a segurança pública de uma cidade não dá por encerrada a
sua investigação ao saber que as autoridades são bem intencionadas, de
modo que vão resolver o problema. As ciências sociais partem justamente
da proposição de que o mundo é complexo demais para explicar tudo por
meio do planejamento de meia dúzia.
Disso
não se seguia que conspirações não existissem: “Ao contrário, elas são
típicos fenômenos sociais. Tornam-se importantes, por exemplo, sempre
que chegam ao poder pessoas que creem sinceramente numa teoria da
conspiração. E os que creem sinceramente que podem trazer o céu para a
terra são os mais suscetíveis de adotar uma teoria da conspiração e de
se envolverem numa contraconspiração para combater conspiradores
inexistentes. É que a única explicação de seu fracasso na produção de
seu céu só pode estar nas más intenções do Demônio, que tem interesse
especial no inferno. Tramam-se conspirações, não há como negar. Mas […]
raramente os conspiradores consumam suas conspirações”.
Popper não dá receita de bolo
Raramente
é diferente de nunca. Em outra obra na qual volta ao tema (Conjecturas e
Refutações), Popper cita Hitler e Lênin como exceções, isto é, como
conspiradores cujas conspirações deram certo. Podemos dizer que Popper
tem muita razão: os conspiradores tendem a crer em teorias da
conspiração (os Protocolos dos Sábios do Sião e o marxismo vulgar, nos
casos citados), e teorias da conspiração fornecem explicações falhas do
mundo, dificultando a ação exitosa sobre ele. Das incontáveis
conspirações ideológicas que existiram no mundo, apenas uma parcela deu
certo. A própria União Soviética ajuda a mostrar isso, já que há mais
revolucionários comunistas fracassados do que exitosos. Marxistas foram
para a Amazônia crentes que o povo ia aderir à luta! Creio que a lição
otimista que podemos tirar de Popper é que os conspiradores são
falíveis: mesmo que tenham êxito na sua tomada de poder, uma hora sua
própria visão equivocada do mundo os levará ao fracasso.
Mas
o mais importante é que tanto a Revolução Bolchevique quanto Alemanha
Nazista constituem objeto de pesquisa da ciência social. Ou seja: uma
conspiração exitosa não é uma exceção impossível de caber na ciência
social. Quem quiser estudar esses fenômenos é obrigado a levar em conta o
fato da conspiração. Mas sua explicação não poderá se embasar na
opinião de que a intenção de Hitler e Lênin são uma explicação
suficiente. A conspiração nazista existiu, mas um cientista social não
pode dizer "Hitler era mau como um pica-pau e quis tomar o poder" e dar
por encerrada a investigação.
Que fazer hoje?
Os
pedantes usam Popper para negar qualquer possibilidade de conspirações
exitosas em qualquer grau. Quem empina o nariz e parece calmo faz uma
imagem melhor do que quem esbraveja e faz alarde. Isso basta para que os
pedantes usem de qualquer texto à mão para dizerem que não há
conspiração alguma, apesar das evidências.
Já
vimos esse filme antes com o Foro de São Paulo. O Foro tinha até site,
mas detratores de Olavo de Carvalho diziam que era teoria da
conspiração. Fazia sentido desconfiar das alegações de Olavo de
Carvalho, já que o Foro de São Paulo poderia existir e ser malsucedido
em suas intenções. De fato, o Foro não alcançou tudo o que pretendia –
ainda assim, a conspiração mostrou-se real e bastante danosa. E por mais
que os envolvidos tenham enriquecido, é impossível desprezar o papel da
ideologia no Foro de São Paulo.
Agora
temos o Fórum Econômico Mundial, do Sr. Klaus Schwab, revelando suas
mil pretensões de nova ordem mundial, de novo normal, de governança
global, de ESG. Uma agenda politicamente correta e neomaltusiana vem
sendo imposta de cima para baixo, seja por meio das grandes corporações
transnacionais, seja por meio da ONU. A obrigação do popperiano, aqui,
seria considerar a conspiração como um fenômeno social típico,
questionar o grau da sua eficácia e se perguntar pelo motivo dessa
eficácia. E os motivos dessa eficácia não seriam razão suficiente para
excluir o aspecto ideológico da conspiração.
Um
popperiano teria a humildade de dizer “eu não sei” a respeito de muitas
coisas relativas ao Fórum Econômico Mundial. O pedantismo dos letrados,
ou um comodismo igual ao dos canadenses, torna incômodo esse tipo de
apreciação.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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