BLOG ORLANDO TAMBOSI
Não
há racismo em “denegrir”: o termo já existia no latim (denigrare)
séculos antes do início da escravidão africana nas Américas, com o mesmo
sentido essencial de “manchar” a imagem de alguém. Ruy Goiaba para a Crusoé:
As
duas ou três pessoas que me leem sabem que já usei algumas vezes aqui a
expressão “etimologia freestyle”. Digo isso quando a alegada origem de
uma palavra é completamente falsa e sem fundamento, mas circula como
verdade absoluta, em geral porque parece ser avalizada por alguma
historinha pitoresca. Exemplo clássico é dizer que “forró” vem do inglês
“for all”: já vi mais de uma pessoa “explicando” que o termo teria
surgido na Segunda Guerra por causa das bases americanas no Nordeste,
quando os ianques promoviam bailes “for all” etc. História divertida,
mas inverídica: o Houaiss nos diz que “forró” é apenas forma abreviada
de “forrobodó”, com o sentido de “baile popular, arrasta-pé, festança”.
Até
aí, por mais que isso me irrite um pouco, não vejo grande problema em a
pessoa acreditar que “forró” deriva mesmo de “for all” ou que
“carcamano” é de fato uma, digamos, homenagem aos imigrantes italianos
que carcavam a mão na balança da venda. Só que o negócio muda de figura
quando a etimologia falsa é não apenas tomada como verdade incontestável
como usada para justificar cancelamento — tanto da palavra em si como
do infeliz que por acaso a emitiu.
Há
inúmeros casos recentes, mas o que ganhou mais tração nas redes sociais
na semana passada foi o do apresentador da GloboNews que passou um pito
na colega repórter, ao vivo, por ela ter usado o verbo “denegrir”. Deve
ter sido batido aí algum recorde de deselegância, ignorância e
sinalização de virtude ao mesmo tempo — piorado pela atitude da
repórter, que se desculpou no ar por ter usado uma “palavra claramente
racista”. O que a etimologia não freestyle nos diz? Que não há racismo
em “denegrir”: o termo já existia no latim (denigrare) séculos antes do
início da escravidão africana nas Américas, com o mesmo sentido
essencial de “manchar” a imagem de alguém. A besteira enunciada por meus
colegas jornalistas é parente daquela que transforma “esclarecimento” —
alusiva à oposição luz/trevas, tão antiga quanto a espécie humana na
Terra — em “escurecimento” ou rebatiza como “ovulário” um seminário só
com mulheres.
E não para por aí. Já citei aqui o vexame daquela agência de checagem de informações
(repito: agência de checagem de informações) que divulgou uma lista de
mitos da internet sobre expressões supostamente racistas — como “feito
nas coxas”, que se fosse alusão a “escravos fabricando telhas”
requereria um escravo de uns 4 metros de altura, e “criado-mudo”, que é
só tradução de dumbwaiter, não um “escravo proibido de falar”. Mais ou
menos na mesma época do episódio na GloboNews, um site de um grande
portal, cujo slogan é “por um mundo melhor”, repetiu as bobagens sobre
“denegrir” e “feito nas coxas” e acrescentou outras, como “a coisa aqui
tá preta” (olhaí, Chico Buarque, melhor copidescar logo aquela letra de
“Meu Caro Amigo”). A lista desse site inclui uma ou outra expressão
realmente racista, como a abominável “serviço de preto” — e presta um
grande desserviço ao colocar no mesmo nível outros termos que nada têm
de racistas (eu, pelo menos, adoraria ter direito a receber uma grana
preta).
Muitas
pessoas que fazem isso, repito outra vez, ganham a vida como
jornalistas ou checadoras de informações. Por que gente que se diz tão
empenhada em combater fake news insiste em propagar essas falsas
etimologias? Porque fake news do bem vale? Porque querem muito pagar
pedágio à polícia da linguagem e mostrar que estão do lado certo? Porque
precisam puxar o saco dos novos legisladores e não querem deixar de ser
convidados para o baile da polícia? Talvez tudo isso junto — e, como
disse um amigo, ainda há a vantagem de a pessoa não precisar tomar
atitudes concretas contra racismo e outras mazelas: para representar o
papel de pessoa progressista, basta acusar as opressões do dicionário.
Vejam: acho perfeitamente razoável que se evite empregar uma palavra ou
outra quando ela pode resultar em interpretações indesejáveis. Mas não
me venha com papinho etimológico freestyle como se fosse as tábuas da
lei.
No
melhor estilo “se não pode vencê-los, junte-se a eles”, um grupo de
amigos do Facebook resolveu ir fundo no freestyle, pegar qualquer
palavra aleatória e inventar uma “história de origem” justificando por
que ela deveria ser cancelada: por exemplo, “não escreva ‘negócio’
porque o termo significa ‘nego’ + ‘cio’, o que além de racista sexualiza
indevidamente os corpos pretos”. Sou 100% a favor de fazer isso com
TODAS as palavras possíveis e ver se cola: com o cancelamento
generalizado da língua machista e opressora que é o português, pelo
menos a gente chegará mais rápido àquele estágio em que só nos
expressaremos com grunhidos — ou, na melhor das hipóteses, com o “ó o
auê aí, ô” dos surfistas.
***
A GOIABICE DA SEMANA
A
mais recente manobra diversionista do bolsonarismo é discutir essa
questão de fundamental relevância para o Brasil que é a Barbie trans:
Otoni de Paula, o vice-líder do governo na Câmara, conseguiu aprovar uma
audiência pública para debater “as implicações psicossociais em
crianças em decorrência da versão da boneca (…) com órgão sexual
masculino” (o que aliás é mentira: a boneca vendida pela Mattel não vem
com o acessório). Seria mais fácil os pais apenas ignorarem
completamente a existência da boneca e/ou não comprá-la para os filhos,
mas sabem como é: com inflação em alta, incompetência generalizada do
governo e nada de bom para mostrar, só o que resta é fazer “guerra
cultural” mesmo.

A “Barbie da discórdia”, inspirada pela atriz trans americana Laverne Cox.
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