MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sábado, 28 de maio de 2022

Mary del Priore: "Está na hora de contar como muitos venceram o preconceito".

 



A historiadora Mary del Priore lamenta a pobreza da visão oficial sobre o Bicentenário da Independência e diz que é mais do que urgente uma pesquisa sobre mobilidade social de afrobrasileiros e afromestiços no período imperial. Entrevista a Carlos Graieb, da Crusoé:


A historiadora carioca Mary del Priore cumpriu um percurso notável em universidades brasileiras e estrangeiras, como professora e pesquisadora. Há cerca de duas décadas, passou a se dedicar ao trabalho de divulgação histórica, aproximando os leitores de personagens e momentos cruciais do passado brasileiro. Vários de seus livros alcançaram um público amplo. Entre eles, histórias das mulheres, da infância e da violência no Brasil. Mary não é uma especialista na história política da Independência, que completa seu bicentenário em 2022, mas mergulhou no período por um ângulo peculiar: a vida íntima da família imperial. Além de um livro sobre a imperatriz Leopoldina, o imperador D. Pedro I e sua amante Domitila, a Marquesa de Santos, ela acaba de lançar uma narrativa sobre os anos em que a inglesa Maria Graham viveu no Brasil, conviveu com a imperatriz e testemunhou sua solidão. Sobre este período que antecede a data do bicentenário, a historiadora destaca a pobreza da abordagem oficial, que recicla clichês já desmentidos sobre o Grito do Ipiranga (“A Independência do Brasil foi conquistada com um brado. Nossa liberdade, anunciada com uma exclamação“, diz o site produzido pelo governo) e a profusão de informações que têm vindo à tona em novos estudos e permitem falar em “Independências“, no plural. A tarefa que ela considera urgente para os historiadores brasileiros é complementar a história da escravidão com uma história da mobilidade social, que levou homens e mulheres negros ou mestiços a assumir papéis de protagonismo ainda nos períodos da Colônia e do Império. “Desde D. João VI, temos uma Corte ‘mulata’“, diz Mary, que abordou o tema em À Procura Deles (Benvirá), livro lançado em 2021. Ela lamenta, ainda, que duzentos anos não tenham bastado para fazer avançar a cidadania no Brasil.

Muitos historiadores têm dito que é preciso se referir ao Bicentenário como sendo “das Independências”, no plural. A própria Associação Nacional de História (Anpuh) lançou um site com esse nome, Bicentenário das Independências. A senhora concorda com essa ideia?

Sim. Isso não é fruto de voluntarismo, mas do crescimento das pesquisas regionais e da descentralização das pós-graduações. Jovens historiadores do Nordeste, por exemplo, vêm produzindo centenas de teses sobre a situação de suas províncias quando da assinatura da emancipação, mostrando o quanto elas estavam descoladas do Rio de Janeiro. Também são descobertos fatos novos: resistência ou adesão ao império, participação de classes médias e escravos nas lutas, batalhas sangrentas ao contrário de um simples “grito”, o papel das cidades do interior e de suas elites contra os interesses lusitanos no litoral. Em suma: muita informação nova que comprova a necessidade de conhecermos melhor o nosso passado.

Como vê o site dedicado pelo governo federal à celebração do Bicentenário?

Não é de espantar. As efemérides tradicionalmente servem aos interesses de Estado, em qualquer parte do mundo. Práticas, rituais, símbolos servem para a construção da memória de um grupo e usa-se a emoção como um instrumento estratégico. Em geral, com tais encenações promove-se um sentimento coletivo de pertença. No caso do governo atual, elas geram apenas a certeza do remoto conhecimento que seus representantes possuem da História do Brasil.

O Bicentenário ocorre em um momento em que as diferenças ditas “identitárias” dominam muitas discussões e existe a possibilidade de que a própria data se transforme em momento de protesto desses grupos. Como a senhora avalia essa situação? Existe uma perspectiva universalizante sobre o Brasil que deva ser contraposta a essa ênfase nas diferenças?

Há espaço para tudo: para protestos, sempre saudáveis, mas, também, para pensar os estertores do Antigo Regime em toda a Europa, o surgimento das ideias liberais nas lutas de Independência e também no seio de uma sociedade que se transformava. Transformações nascidas do letramento, da presença da imprensa, do nascimento da opinião pública, do consumo de bens que chegavam desde a Abertura dos Portos, em 1808 e, o mais importante e pouco estudado, da inserção de afrobrasileiros e afromestiços no sistema produtivo e no aparelho de Estado. Militares, burocratas, médicos, advogados e futuros conselheiros de D. Pedro I, como o Visconde de Montezuma ou Antônio Rebouças, revelam a mobilidade social que já existia e vem sendo pouco estudada pela dificuldade de documentos mas também pela ênfase quase exclusiva em estudos sobre a escravidão.


Em 1823, um ano depois da Independência, houve um longo debate no Congresso para estabelecer os critérios definidores da cidadania brasileira. O problema do status dos escravos, obviamente, servia de pano de fundo a essas discussões. Duzentos anos depois, o que é ser cidadão brasileiro?

Ser cidadão hoje é pagar impostos altíssimos sem ter serviços, é sofrer violência sem ter proteção, é morrer sem remédio e é olhar Brasília com o nojo de quem examina um laboratório de répteis.

Das muitas interpretações que se pode fazer de uma efeméride como o Bicentenário, existe alguma que lhe pareça necessário não apenas descartar — por ser anacrônica, por exemplo —, mas combater ativamente?

A história é um processo. Novas teses apoiadas em descobertas documentais aposentam velhas interpretações. Não quer dizer que elas não tenham valor. Elas representam o momento em que foram concebidas. Nos permitem interpretar a mentalidade de quem as elaborou e as perguntas que eram então formuladas.

A senhora abordou a Independência sob o prisma da vida privada, especialmente da família imperial. O que essa abordagem revela?

A consulta aos arquivos do Museu Imperial de Petrópolis me deixou enxergar com lucidez o grau de abandono em que vivia a imperatriz Leopoldina. Abandono comprovado por viajantes de época, inclusive Maria Graham, protagonista de meu último livro, que compartilhou sua solidão. Depressão, tristeza, isolamento são características de muitas mulheres traídas por seus companheiros, até hoje. Estudar Leopoldina e o enigma da servidão voluntária feminina nos aproxima de nossas contemporâneas.

Como historiadora, existe ainda algum enigma que precise ser desvendado sobre a Independência? Que pesquisa sobre sobre aquele momento a senhora gostaria de ver feita pelos jovens historiadores?

A mais do que urgente pesquisa sobre mobilidade social de afrobrasileiros e afromestiços. A mobilidade já existia nas primeiras décadas do século XIX. Desde D. João VI, tivemos uma Corte “mulata”. D. Pedro I morreu nos braços de um médico pardo – hoje, preto. No Segundo Reinado tivemos ministro das finanças, presidente do Banco do Brasil, diplomatas, Conselheiros do Império, barões, médicos, jornalistas, enfim, todos mestiços. Eles não representam um todo, mas a ponta de um iceberg que Gilberto Freyre já tinha tratado em Sobrados e Mocambos ao analisar os bacharéis mulatos. O historiador Manolo Florentino, que nos deixou precocemente, insistia que, para entender a miscigenação, era preciso estudar a mobilidade social. O tema é esse: fazer a história da mestiçagem e da mobilidade social e não perder tempo com conceitos abstratos. Desde 1988, devido ao centenário da Abolição, estudamos escravidão. Talvez fosse chegada a hora de se debruçar sobre o pós-escravidão. Ninguém nega que a escravidão maltratou e matou de fome e dor milhares de seres humanos. Ninguém nega que escravidão e racismo são duas caras da mesma moeda. Mas os escravizados e seus descendentes também encontraram brechas no sistema que os oprimia. Se continuarmos a consultar apenas listas de escravos nos testamentos e certidões de nascimento dos arquivos eclesiásticos, só veremos escravidão. Está na hora de reunir documentos e construir uma história que conte também como muitos homens e mulheres venceram o preconceito e a desigualdade.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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