A historiadora Mary del Priore lamenta a pobreza da visão oficial sobre o Bicentenário da Independência e diz que é mais do que urgente uma pesquisa sobre mobilidade social de afrobrasileiros e afromestiços no período imperial. Entrevista a Carlos Graieb, da Crusoé:
A
historiadora carioca Mary del Priore cumpriu um percurso notável em
universidades brasileiras e estrangeiras, como professora e
pesquisadora. Há cerca de duas décadas, passou a se dedicar ao trabalho
de divulgação histórica, aproximando os leitores de personagens e
momentos cruciais do passado brasileiro. Vários de seus livros
alcançaram um público amplo. Entre eles, histórias das mulheres, da
infância e da violência no Brasil. Mary não é uma especialista na
história política da Independência, que completa seu bicentenário em
2022, mas mergulhou no período por um ângulo peculiar: a vida íntima da
família imperial. Além de um livro sobre a imperatriz Leopoldina, o
imperador D. Pedro I e sua amante Domitila, a Marquesa de Santos, ela
acaba de lançar uma narrativa sobre os anos em que a inglesa Maria
Graham viveu no Brasil, conviveu com a imperatriz e testemunhou sua
solidão. Sobre este período que antecede a data do bicentenário, a
historiadora destaca a pobreza da abordagem oficial, que recicla clichês
já desmentidos sobre o Grito do Ipiranga (“A Independência do Brasil
foi conquistada com um brado. Nossa liberdade, anunciada com uma
exclamação“, diz o site produzido pelo governo)
e a profusão de informações que têm vindo à tona em novos estudos e
permitem falar em “Independências“, no plural. A tarefa que ela
considera urgente para os historiadores brasileiros é complementar a
história da escravidão com uma história da mobilidade social, que levou
homens e mulheres negros ou mestiços a assumir papéis de protagonismo
ainda nos períodos da Colônia e do Império. “Desde D. João VI, temos uma
Corte ‘mulata’“, diz Mary, que abordou o tema em À Procura Deles
(Benvirá), livro lançado em 2021. Ela lamenta, ainda, que duzentos anos
não tenham bastado para fazer avançar a cidadania no Brasil.
Muitos
historiadores têm dito que é preciso se referir ao Bicentenário como
sendo “das Independências”, no plural. A própria Associação Nacional de
História (Anpuh) lançou um site com esse nome, Bicentenário das Independências. A senhora concorda com essa ideia?
Sim.
Isso não é fruto de voluntarismo, mas do crescimento das pesquisas
regionais e da descentralização das pós-graduações. Jovens historiadores
do Nordeste, por exemplo, vêm produzindo centenas de teses sobre a
situação de suas províncias quando da assinatura da emancipação,
mostrando o quanto elas estavam descoladas do Rio de Janeiro. Também são
descobertos fatos novos: resistência ou adesão ao império, participação
de classes médias e escravos nas lutas, batalhas sangrentas ao
contrário de um simples “grito”, o papel das cidades do interior e de
suas elites contra os interesses lusitanos no litoral. Em suma: muita
informação nova que comprova a necessidade de conhecermos melhor o nosso
passado.
Como vê o site dedicado pelo governo federal à celebração do Bicentenário?
Não
é de espantar. As efemérides tradicionalmente servem aos interesses de
Estado, em qualquer parte do mundo. Práticas, rituais, símbolos servem
para a construção da memória de um grupo e usa-se a emoção como um
instrumento estratégico. Em geral, com tais encenações promove-se um
sentimento coletivo de pertença. No caso do governo atual, elas geram
apenas a certeza do remoto conhecimento que seus representantes possuem
da História do Brasil.
O
Bicentenário ocorre em um momento em que as diferenças ditas
“identitárias” dominam muitas discussões e existe a possibilidade de que
a própria data se transforme em momento de protesto desses grupos. Como
a senhora avalia essa situação? Existe uma perspectiva universalizante
sobre o Brasil que deva ser contraposta a essa ênfase nas diferenças?
Há
espaço para tudo: para protestos, sempre saudáveis, mas, também, para
pensar os estertores do Antigo Regime em toda a Europa, o surgimento das
ideias liberais nas lutas de Independência e também no seio de uma
sociedade que se transformava. Transformações nascidas do letramento, da
presença da imprensa, do nascimento da opinião pública, do consumo de
bens que chegavam desde a Abertura dos Portos, em 1808 e, o mais
importante e pouco estudado, da inserção de afrobrasileiros e
afromestiços no sistema produtivo e no aparelho de Estado. Militares,
burocratas, médicos, advogados e futuros conselheiros de D. Pedro I,
como o Visconde de Montezuma ou Antônio Rebouças, revelam a mobilidade
social que já existia e vem sendo pouco estudada pela dificuldade de
documentos mas também pela ênfase quase exclusiva em estudos sobre a
escravidão.
Em
1823, um ano depois da Independência, houve um longo debate no
Congresso para estabelecer os critérios definidores da cidadania
brasileira. O problema do status dos escravos, obviamente, servia de
pano de fundo a essas discussões. Duzentos anos depois, o que é ser
cidadão brasileiro?
Ser
cidadão hoje é pagar impostos altíssimos sem ter serviços, é sofrer
violência sem ter proteção, é morrer sem remédio e é olhar Brasília com o
nojo de quem examina um laboratório de répteis.
Das
muitas interpretações que se pode fazer de uma efeméride como o
Bicentenário, existe alguma que lhe pareça necessário não apenas
descartar — por ser anacrônica, por exemplo —, mas combater ativamente?
A
história é um processo. Novas teses apoiadas em descobertas documentais
aposentam velhas interpretações. Não quer dizer que elas não tenham
valor. Elas representam o momento em que foram concebidas. Nos permitem
interpretar a mentalidade de quem as elaborou e as perguntas que eram
então formuladas.
A senhora abordou a Independência sob o prisma da vida privada, especialmente da família imperial. O que essa abordagem revela?
A
consulta aos arquivos do Museu Imperial de Petrópolis me deixou
enxergar com lucidez o grau de abandono em que vivia a imperatriz
Leopoldina. Abandono comprovado por viajantes de época, inclusive Maria
Graham, protagonista de meu último livro, que compartilhou sua solidão.
Depressão, tristeza, isolamento são características de muitas mulheres
traídas por seus companheiros, até hoje. Estudar Leopoldina e o enigma
da servidão voluntária feminina nos aproxima de nossas contemporâneas.
Como
historiadora, existe ainda algum enigma que precise ser desvendado
sobre a Independência? Que pesquisa sobre sobre aquele momento a senhora
gostaria de ver feita pelos jovens historiadores?
A
mais do que urgente pesquisa sobre mobilidade social de afrobrasileiros
e afromestiços. A mobilidade já existia nas primeiras décadas do século
XIX. Desde D. João VI, tivemos uma Corte “mulata”. D. Pedro I morreu
nos braços de um médico pardo – hoje, preto. No Segundo Reinado tivemos
ministro das finanças, presidente do Banco do Brasil, diplomatas,
Conselheiros do Império, barões, médicos, jornalistas, enfim, todos
mestiços. Eles não representam um todo, mas a ponta de um iceberg que
Gilberto Freyre já tinha tratado em Sobrados e Mocambos ao analisar os
bacharéis mulatos. O historiador Manolo Florentino, que nos deixou
precocemente, insistia que, para entender a miscigenação, era preciso
estudar a mobilidade social. O tema é esse: fazer a história da
mestiçagem e da mobilidade social e não perder tempo com conceitos
abstratos. Desde 1988, devido ao centenário da Abolição, estudamos
escravidão. Talvez fosse chegada a hora de se debruçar sobre o
pós-escravidão. Ninguém nega que a escravidão maltratou e matou de fome e
dor milhares de seres humanos. Ninguém nega que escravidão e racismo
são duas caras da mesma moeda. Mas os escravizados e seus descendentes
também encontraram brechas no sistema que os oprimia. Se continuarmos a
consultar apenas listas de escravos nos testamentos e certidões de
nascimento dos arquivos eclesiásticos, só veremos escravidão. Está na
hora de reunir documentos e construir uma história que conte também como
muitos homens e mulheres venceram o preconceito e a desigualdade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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