As ações da Rússia não podem ser tratadas como ocorreu com o conflito de 1936, quando Europa ignorou forças autoritárias. João Pereira Coutinho para a FSP:
1.
A guerra na Ucrânia tem levado os eruditos a procurar comparações
históricas. A Segunda Guerra Mundial ganha essa competição. Vladimir
Putin, tal como Hitler, quer conquistar o seu “espaço vital” na Ucrânia,
reunindo os povos eslavos sob a autoridade de Moscou e recriando o
Império russo. Os europeus, tal como os “apaziguadores” da década de
1930, vão permitindo que Putin cometa as suas atrocidades, por temerem
uma guerra e, além disso, por serem dependentes da energia russa. E, por
falar em atrocidades, os massacres da população civil nos arredores de
Kiev, sem falar das barbáries cometidas em Mariupol ou Kharkiv, apenas
confirmam que o genocídio também é uma especialidade de Putin, tal como
era para o velho Adolf.
Por
mais acertadas que sejam essas comparações, minha imaginação histórica
está na Espanha. Para sermos mais exatos, na Guerra Civil de 1936 a
1939, quando nacionalistas e republicanos se matavam mutuamente. As
democracias europeias, essas assistiam da arquibancada. O general
Francisco Franco acabou por vencer. Em parte, porque Hitler e Mussolini
encararam a Espanha como um campo de treino para os seus exércitos e
armamentos, apoiando o caudilho. Stálin, do lado dos republicanos,
também entrou no baile, depois de a França e o Reino Unido se recusarem a
fazê-lo. Mas a atitude da União Soviética foi sempre ambígua e, a
partir de 1938, mais um obstáculo do que uma ajuda para a causa
republicana.
Franco
venceu, repito, mas talvez seja mais rigoroso escrever que foi Hitler
(e Mussolini, em parte) quem verdadeiramente saiu vencedor. A França e o
Reino Unido não tiveram estômago para travá-lo na Espanha. Por que
motivo iriam sujar as mãos no leste da Europa? Como dirá o premiê
britânico Neville Chamberlain sobre a crise dos Sudetos, aquilo era “uma
disputa num país longínquo, entre pessoas das quais nada sabemos”.
Os
europeus, tal como os “apaziguadores” da década de 1930, vão permitindo
que Putin cometa as suas atrocidades, por temerem uma guerra e, além
disso, por serem dependentes da energia russa
A
Ucrânia é hoje a Espanha, onde se defrontam duas concepções políticas.
De um lado, está um país democrático, com as imensas falhas que definem
os países democráticos, mas que deseja viver em paz, de preferência
integrado à União Europeia. Do outro, um regime autoritário, envenenado
pelo ressentimento histórico e incapaz de aceitar que a Ucrânia fuja da
sua “esfera de influência”.
As
preocupações de Putin sobre a expansão da Otan, estimáveis em teoria,
foram arrasadas, na prática, pela barbaridade dos seus soldados. O
lero-lero sobre a irmandade espiritual de russos e ucranianos jaz agora
nas valas comuns de Bucha e de outras cidades.
Em
1936, os países democráticos deixaram a Espanha entregue ao seu
destino, ou seja, ofereceram o país como rampa de lançamento para que
Hitler fosse mais longe, cada vez mais longe, até arrastar o continente
para uma guerra total. Se Putin não for travado na Ucrânia, desde logo
pelo apoio militar incondicional à resistência ucraniana, o que hoje nos
parece “uma disputa num país longínquo, entre pessoas das quais nada
sabemos” acabará por expandir-se até arrombar a porta das democracias
ocidentais.
2.
No dia 7 de janeiro de 2015, terroristas islâmicos invadiram a redação
do jornal satírico Charlie Hebdo e mataram 12 pessoas. Nos dias
seguintes, uma mensagem correu o mundo: “Je suis Charlie”. Bonito. O
homicídio, para a maioria, não era resposta legítima ao humor, por mais
ultrajante que fosse esse humor aos olhos dos fundamentalistas.
Mas
vamos imaginar que os terroristas, nesse dia, não matavam gente. Apenas
entravam no jornal para agredir os cartunistas. Será que o pessoal
continuaria defendendo a liberdade de expressão, condenando as ações dos
fanáticos? Tenho dúvidas. Meu recente artigo sobre o tapa de Will Smith
na cara de Chris Rock mostrou, em centenas de mensagens recebidas, que
“o humor tem limites” e que “o humorista teve o que mereceu”.
Ironicamente, esse tipo de raciocínio poderia ser repetido pelos
próprios fanáticos, que também não toleram qualquer chacota que tenha
como objeto aquilo que mais veneram.
No
fundo, o problema dos terroristas é usarem sempre métodos excessivos.
Se eles se limitassem a agredir os insolentes, seria compreensível e até
louvável para que o pessoal ostentasse “Je ne suis pas Charlie” nas
camisetas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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