BLOG ORLANDO TAMBOSI
Na ‘Guerra Mundial Conectada’, virtualmente qualquer um no planeta pode observar combates em detalhe, participar de alguma maneira ou ser afetado economicamente — não importa onde viva. Thomas Friedman para o NYT, com tradução para do Estadão:
Quase seis semanas após o início da guerra entre Rússia e Ucrânia, começo a me perguntar se este conflito não é nossa primeira guerra mundial verdadeira — muito mais do que a 1.ª Guerra ou a 2.ª Guerra
jamais foram. Nesta guerra, que considero uma “Guerra Mundial
Conectada”, virtualmente qualquer um no planeta pode observar combates
em detalhe, participar de alguma maneira ou ser afetado economicamente —
não importa onde viva.
Ainda
que a batalha terrestre que desencadeou a Guerra Mundial Conectada seja
ostensivamente sobre quem deveria controlar a Ucrânia, não se deixe
enganar. Este conflito se transformou rapidamente na “grande batalha”
entre os dois sistemas políticos mais dominantes do mundo atual: o livre
mercado e “a democracia do Estado de Direito versus a cleptocracia
autoritária”, ressaltou-me o especialista sueco em economia russa Anders
Aslund.
Apesar desta guerra estar longe de acabar, e Vladimir Putin
ainda ser capaz de encontrar uma maneira de vencer e se fortalecer, se
ele não conseguir, o conflito poderia virar um divisor de águas na luta
entre sistemas democráticos e não democráticos. Vale lembrar que a 2.ª
Guerra pôs fim ao fascismo e que a Guerra Fria pôs
fim ao comunismo ortodoxo — até na China, eventualmente. Então, o que
vier a acontecer nas ruas de Kiev, em Mariupol e na região do Donbas
poderia influenciar sistemas políticos muito além da Ucrânia e muito
adiante no futuro.
Certamente
outros líderes autocráticos que, como o da China, observam a Rússia com
atenção, veem a economia russa ser enfraquecida pelas sanções do
Ocidente, milhares de seus jovens qualificados em tecnologia fugindo de
um governo que lhes nega acesso à internet e notícias críveis e cujo
Exército inepto parece incapaz de reunir, compartilhar e direcionar
informações exatas para a cúpula do poder. Esses líderes têm de estar se
perguntando: “Caramba, sou assim tão vulnerável? Sou presidente de um
castelo de cartas como esse?”.
Na
1.ª Guerra e na 2.ª Guerra ninguém tinha smartphones nem acesso a redes
sociais através dos quais poderia observar e participar da guerra de
maneiras não cinéticas. Na verdade, grande parte da população do mundo
ainda era colonizada e não possuía liberdade plena para expressar pontos
de vista independentes, mesmo se tivessem a tecnologia. Muitos dos que
viviam longe das zonas de guerra também eram camponeses de subsistência
extremamente pobres, que não foram tão profundamente afetados por
aquelas duas primeiras guerras mundiais. As gigantescas classes médias e
baixas urbanizadas e conectadas globalmente do mundo atual não
existiam.
A guerra na palma da sua mão
Hoje,
qualquer pessoa com um smartphone nas mãos é capaz de ver o que está
acontecendo na Ucrânia — ao vivo e a cores — e expressar opiniões
globalmente por meio de redes sociais. No nosso mundo pós-colonial,
governos de virtualmente todos os países podem votar para condenar ou
perdoar um lado ou outro na guerra da Ucrânia na Assembléia Geral da
ONU.
Ainda
que as estimativas variem, parece que entre 3 bilhões e 4 bilhões de
pessoas no planeta — quase metade da população — possuem smartphones
atualmente, e apesar da censura na internet continuar um problema real,
particularmente na China, outras tantas pessoas são capazes de
perscrutar profundamente outros tantos lugares. E isso não é tudo.
Qualquer
um que tenha um smartphone e um cartão de crédito é capaz de ajudar
desconhecidos na Ucrânia por meio do Airbnb, simplesmente reservando uma
noite em suas residências sem utilizar a hospedagem. Adolescentes de
todos os lados são capazes de criar aplicativos no Twitter para rastrear
as localizações dos oligarcas russos e seus iates. E o aplicativo de
mensagens instantâneas criptografadas Telegram — que foi inventado por
dois tecnológicos irmãos russos como uma ferramenta para se comunicar
fora do alcance do Kremlin — “emergiu como o lugar certo para obter
informações ao vivo e sem filtro da guerra tanto para refugiados
ucranianos quanto para russos cada vez mais isolados”, noticiou a NPR. E
é administrado a partir de Dubai!
Enquanto
isso, o governo da Ucrânia tem conseguido acessar uma fonte de
financiamento completamente nova — levantando mais de US$ 70 milhões em
criptomoedas com indivíduos de todo o mundo, depois de recorrer às redes
sociais para conseguir doações. E o bilionário CEO da Tesla, Elon Musk,
ativou o serviço de banda larga via satélite de sua SpaceX para dar
cobertura de internet de alta velocidade para a Ucrânia depois que uma
autoridade ucraniana entrou em contato com ele via Twitter pedindo ajuda
para combater os esforços russos de desconectar o país do restante do
mundo.
Empresas
de satélites com base nos EUA, como Maxar Technologies, permitiram a
todos que vissem imagens captadas do espaço de centenas de pessoas
desesperadas fazendo fila diante de um supermercado em Mariupol — apesar
de os russos terem cercado a cidade por terra e impedido qualquer
jornalista de entrar.
Há
também ciberguerreiros capazes de entrar no conflito a partir de
qualquer lugar — e que têm feito isso. A CNBC noticiou que “um perfil de
Twitter popular, chamado ‘Anonymous’, declarou que o sombrio grupo
ativista estava travando uma ‘ciberguerra’ contra a Rússia”. A conta,
que possui mais de 7,9 milhões de seguidores globalmente — quase oito
vezes o número de seguidores do Exército russo (incluindo cerca de 500
mil novos seguidores Anonymous desde o início da invasão à Ucrânia) —
“assumiu responsabilidade por desativar proeminentes websites do governo
da Rússia, de meios de comunicação e empresas do país — e vazar dados
de entidades como a Roskomnadzor, a agência federal responsável por
censurar a mídia russa”.
Esses jogadores globais não governamentais e superempoderados e suas plataformas não estavam presentes na 1.ª e na 2.ª Guerras.
Guerra local, impacto global
Mas
da mesma maneira que tantas pessoas podem afetar esta guerra, mais
pessoas podem ser afetadas por ela. Rússia e Ucrânia são exportadores
cruciais de trigo e fertilizantes para as cadeias agrícolas de
fornecimento que alimentam atualmente o mundo — e que foram
interrompidas por esta guerra. Uma guerra entre apenas dois países da
Europa elevou os preços dos alimentos para egípcios, brasileiros,
indianos e africanos.
E
por a Rússia ser um dos maiores exportadores de gás natural, de
petróleo e do diesel usado por fazendeiros em seus tratores, as sanções
sobre a infraestrutura de energia russa estão prejudicando suas
exportações, o que faz com que os preços da gasolina na bomba aumentarem
de Minneapolis ao México, a Mumbai, e forçando fazendeiros da Argentina
a racionar o uso de tratores movidos a diesel ou cortar o uso de
fertilizantes, colocando em risco as exportações agrícolas argentinas e
aumentando ainda mais os preços já em elevação dos alimentos pelo mundo.
Há
um outro inesperado ângulo financeiro da globalização nesta guerra ao
qual você realmente precisa atentar: Putin economizou mais de US$ 600
bilhões em ouro, obrigações de governos estrangeiros e moedas
estrangeiras, que ele reuniu com as exportações russas de minérios e
energia precisamente para se proteger de sanções do Ocidente. Mas Putin
aparentemente se esqueceu que, no mundo conectado de hoje, conforme a
prática comum, seu governo depositou a maior parte desses recursos em
bancos ocidentais e da China.
De
acordo com o GeoEconomics Center, do Atlantic Council, os seis países
que mais concentram ativos do Banco Central russo em moeda estrangeira
porcentualmente são: China, 17,7%; França, 15,6%; Japão, 12,8%;
Alemanha, 12,2%; EUA, 8,5%; e Reino Unido, 5,8%. O Banco de Compensações
Internacionais e o Fundo Monetário Internacional detêm 6,4%.
Todos
esses países exceto a China congelaram as reservas russas que mantêm —
então, cerca de US$ 330 bilhões estão inacessíveis para Putin, de acordo
com o rastreamento do Atlantic Council. Mas ele não apenas está
impedido de tocar nessas reservas para impulsionar sua economia, pois
haverá um esforço global para direcionar esses recursos para reparações
destinadas a reconstrução de casas e prédios de apartamentos dos
ucranianos, estradas e estruturas do governo da Ucrânia, que o Exército
russo destruiu na guerra escolhida por Putin.
Uma
mensagem para Putin: “Obrigado por usar nossos bancos. Será difícil
juridicamente apreender seus bens para as reparações, mas é melhor você
ir preparando os advogados”.
Um alerta aos autocratas
Por
todas essas razões, todos os outros líderes do mundo que derivaram para
alguma a versão de capitalismo autoritário ou cleptocracia inspirada em
Putin têm com que se preocupar — mesmo que não sejam facilmente
desalojáveis, não importa o que acontecer na Rússia.
Esses
regimes tornaram-se adeptos do uso de novas tecnologias de vigilância
para controlar oponentes e fluxos de informação e manipular políticas e
recursos financeiros estatais para se manter agarrados ao poder. Estamos
falando de Turquia, Mianmar, China, Coreia do Norte, Peru, Brasil,
Filipinas, Hungria e vários países árabes. Putin certamente esperava que
um segundo mandato de Donald Trump pudesse transformar os EUA numa
versão desse tipo de cleptocracia autoritária e fazer o equilíbrio
global pender para seu lado.
E
então veio esta guerra. Não há dúvida que a democracia na Ucrânia é
frágil e que o país tem seus próprios problemas graves com oligarcas e
corrupção. A maior aspiração de Kiev, porém, não era aderir à Otan, era
aderir à União Europeia, e o governo ucraniano empreendia um processo de
depuração para alcançar esse objetivo.
Foi
isso o que realmente desencadeou esta guerra. Putin jamais permitiria
que uma Ucrânia eslava se transformasse numa democracia de livre mercado
bem-sucedida da UE bem ao lado de sua estagnante cleptocracia
russo-eslava. O contraste teria sido insuportável para Putin, e é por
isso que ele está tentando aniquilar a Ucrânia.
Mas
acontece que Putin não tinha nenhuma noção a respeito do mundo em que
vivia, nenhuma noção a respeito das fragilidades de seu próprio sistema,
nenhuma noção a respeito da capacidade de todo o mundo livre e
democrático se unir para lutar contra ele na Ucrânia e, acima de tudo,
nenhuma noção a respeito de quantas pessoas estariam assistindo.
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