Os reveses da China e da Rússia fissuram a ideia de que ‘a autocracia funciona’. As forças democráticas do Ocidente têm a oportunidade de desmoralizar suas lideranças. Editorial do Estadão:
Há
mais de uma década a democracia global está em recessão e a autocracia,
em ascensão. Em 2019, Vladimir Putin declarou o liberalismo “obsoleto”.
Assim como ele, Xi Jinping na China consumou manobras constitucionais
para se perpetuar no poder. A narrativa da “decadência ocidental”
despertou uma legião de emuladores nas democracias liberais.
Tipicamente,
esses populistas e autoritários se apresentam como indispensáveis – “só
eu posso consertar as coisas” disse Donald Trump nos EUA. De Varsóvia a
Nova Délhi, de Ancara a Brasília, lideranças estimulam um culto à
personalidade, apresentam-se, domesticamente, como campeões do “povo”
contra as “elites” e, internacionalmente, como encarnações de suas
nações. À direita, em especial, a nostalgia nacionalista, o
conservadorismo cultural, a intolerância com minorias e o desprezo pelo
“politicamente correto” galvanizaram o Brexit na Inglaterra, a eleição
de Trump ou os eurocéticos na União Europeia.
O
presidente Jair Bolsonaro, usualmente tão desconfortável nos palcos
internacionais, fez questão de visitar Putin e Viktor Orbán para se
banhar em sua aura de “líderes fortes”. Recentemente, Luiz Inácio Lula
da Silva se derramou em loas à China, como “um modelo de desenvolvimento
para o mundo inteiro”, “capaz de lutar contra o coronavírus tão
rapidamente porque tem um partido forte e um governo forte, porque o
governo tem controle e poder de comando”.
De
fato, a pandemia parecia o laboratório ideal para testar a potência das
tecnocracias centralizadoras e a virilidade de seus líderes. Do mesmo
modo, uma ocupação rápida e massiva da Ucrânia confirmaria Putin como
“mestre estrategista”. Mas os fatos caminham em outra direção. Os
tanques russos sucateados na Ucrânia e as ruas desertas de Xangai com
centenas de milhões de chineses confinados com fome e medo são a imagem
mais eloquente desse revés.
Paradoxalmente,
a potencial desmoralização dos autocratas e seus admiradores não tem
raízes morais. Fosse o caso, ela já teria acontecido após as atrocidades
na Síria ou em Xinjiang. Não é um problema de moralidade, mas de
competência.
A
resistência ucraniana foi bem mais feroz do que Putin previa. Assim
também a coordenação ocidental. Novos países querem se juntar à Otan. O
fiasco militar e econômico despertou focos de dissidência entre
celebridades, oligarcas e mesmo militares russos.
A
estratégia da “covid zero” na China se tinge com as cores de uma
distopia. O partido não preparou os cidadãos para conviverem com o
vírus, suas vacinas são menos eficientes e não cobriram todos os
vulneráveis. O controle sobre seu empresariado, com um misto de
subsídios e intimidação, arrisca enfraquecê-lo no mercado global de
capitais e deixá-lo para trás na corrida pela inovação. O apoio a Putin
pode ferir as relações com a Europa e os EUA.
Não
que se deva subestimar as autocracias. Irã, Cuba e Venezuela já se
mostraram notavelmente resistentes às sanções ocidentais. A popularidade
de Putin parece ter crescido após a guerra. A economia chinesa segue em
ascensão e o mero tamanho de seu mercado sempre tentará as
multinacionais a contornar seus padrões éticos. Mas a pandemia e a
guerra expuseram suas vulnerabilidades. A obsessão com o controle da
vida privada, a húbris resultante da desnecessidade de prestar contas a
uma burocracia de sicofantas e a ojeriza a admitir seus erros continuam
imorais como sempre, mas estão se mostrando ineficazes como nunca.
O
abalo à ideia de que “a autocracia funciona” é uma ameaça existencial
aos populistas e autoritários no Ocidente. Como disse o articulista
Thomas Friedman, “enquanto ainda pudermos votar para nos livrar de
líderes incompetentes e manter ecossistemas de informação que exponham
mentiras sistêmicas e desafiem a censura, seremos capazes de nos adaptar
numa era de rápidas mudanças”. Mas essas vantagens competitivas só
serão reais se forem postas em prática. Se os líderes autocráticos estão
mais vulneráveis, os democráticos ainda têm um longo caminho para
resgatar a confiança de suas populações.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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