Carlos II, rei da Inglaterra de 1651 a 1685. |
Não se discutia apenas política nos cafés, mas também filosofia, tanto na Inglaterra quanto na França. Alguns dos nomes mais importantes da época, como Voltaire (1694-1778), Jean Jacques Rousseau (1712-1778) e Isaac Newton (1643-1727) eram frequentadores assíduos desses espaços. Tiago Cordeiro para a Gazeta do Povo:
“A
multiplicação de cafés no reino provocou efeitos maléficos e perigosos.
Nestes espaços, tem havido a divulgação de informações maliciosas
escandalosas, visando difamar o governo de Sua Majestade, e assim
provocar distúrbios na paz do reino”.
Esse
é um trecho da proclamação real foi publicada pelo jornal The London
Gazette no dia 29 de dezembro de 1675. Estabelecia que os cafés do país
não teriam mais autorização para abrir as portas, a partir do dia 10 de
janeiro de 1676. O motivo, como o texto indica, era o temor que estes
locais provocavam no rei Carlos II (1630-1685). Seriam espaços para
produção de notícias falsas e reunião de pessoas que contestavam o
governo. Portanto, não poderiam mais funcionar.
A
reação popular foi a pior possível. Mesmo integrantes da corte,
influentes junto ao monarca, fizeram lobby para que a medida fosse
cancelada. De fato, a 8 de janeiro, dois dias antes de a decisão entrar
em vigor, Carlos II voltou atrás. Nem foi a primeira vez: ele já havia
tentado barrar as reuniões de teor político em cafés por duas vezes, em
1673 e 1674.
Em
1679, voltaria a considerar a possibilidade de retirar as licenças de
funcionamento desses locais, novamente sem sucesso. Depois de sua morte,
seu irmão e sucessor, Jaime II, voltou à carga, tentando emplacar uma
lei contra reuniões de cunho político em cafés. Mais uma vez, a
proclamação foi mal recebida.
Mas
qual era, afinal, o problema dos cafés ingleses? Num momento em que o
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ameaça barrar as atividades do
Telegram no Brasil, em pleno ano eleitoral, não é difícil entender o
argumento dos reis Carlos II e Jaime II, 346 anos atrás: se um espaço de
debates incomoda um gestor público, por que não fechá-lo, e assim
cortar o suposto problema pela raiz? No caso do Telegram, o acesso
chegou a ser bloqueado, e depois liberado. Na Inglaterra do século 17,
há um motivo para as tentativas dos monarcas terem sido mal sucedidas.
Espaços democráticos
Antes
de ser terra do chá, a Inglaterra descobriu o café. A bebida se tornou
popular primeiro no século XVI, em Constantinopla. Espaços públicos para
socialização, em que se consumia a bebida enquanto se negociava acordos
comerciais e políticos, se tornaram populares. A moda chegou a Oxford
em 1650. Em Londres, o primeiro estabelecimento do gênero surgiu em
1652.
Os
locais tinham mesas amplas, com cadeiras lado a lado, onde homens das
ciências, das artes e da política conversavam enquanto liam os jornais.
Nessa época, a imprensa florescia, alimentando os debates na mesma
medida em que jornalistas também frequentavam os cafés em busca de
notícias. Rapidamente, este ambiente tomou o espaço de locais mais
formais, como as cortes e as academias, onde os relacionamentos seguiam
uma relação de hierarquia. E isso incomodou profundamente o governo
local.
“Apesar
de carregar um ar de distinção, que os diferenciavam de outros locais,
como as tavernas, os cafés eram associados com a disseminação de rumores
e notícias falsas entre a população em geral, além de abrigar reuniões
de pessoas insatisfeitas com o governo”, escreve o historiador Brian
Cowan, autor de The Social Life of Coffee: The Emergence of the British
Coffeehouse, em artigo sobre o tema.
Não
apenas se discutia política nos cafés, como também filosofia, e não
apenas na Inglaterra. Alguns dos nomes mais importantes da época, como
Voltaire (1694-1778), Jean Jacques Rousseau (1712-1778) e Isaac Newton
(1643-1727) eram frequentadores assíduos desses espaços.
De
sua parte, Carlos II não foi o único a lutar por barrar esses espaços
de diálogos democráticos. Tentativas semelhantes, também mal sucedidas,
aconteceram, por exemplo, nas repúblicas que posteriormente formariam a
Alemanha. Mas o monarca inglês tinha uma motivação pessoal adicional
para se incomodar tanto com os cafés.
Monarquia em crise
Nascido
em 1630, filho de Carlos I, Carlos II passou boa parte da vida no
exílio. Seu pai havia assumido o governo em 1625, envolveu-se numa
guerra civil em 1642, perdeu o posto em 1645 e foi executado em 1649.
Carlos II só retomaria o poder em 1660, quando a Inglaterra voltou a ser
regida por uma monarquia — fez questão de exumar o corpo de Oliver
Cromwell, o governante que mandou matar seu pai e havia falecido em
1658, e exigir uma decapitação no cadáver.
O
fato de que havia, no reino, centenas de espaços para líderes se
reunirem para falar mal do governo, portanto, apenas aumentava a natural
sensação de insegurança institucional do monarca, assim como de seu
irmão e sucessor.
Com
o passar das décadas, o café começou a perder a força para o chá, que
se tornou a bebida não alcoólica de preferência dos britânicos. Mas o
hábito de reunir pessoas para dialogar de forma livre se manteve. “No
longo prazo, a coroa relutantemente aprendeu a conviver com os cafés”,
explica Brian Cowan. Fica a lição para o Judiciário brasileiro.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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