BLOG ORLANDO TAMBOSI
Não é possível surgir uma variante mais gravosa para o ser humano por imposição matemática de uma lei conhecida há 150 anos – a lei da seleção natural. Os biólogos sabem-no, os políticos que o aceitem. João Pires da Cruz para o Observador:
Não
sou químico, biólogo, bioquímico, médico, enfermeiro, nem tenho
qualquer título formal na área das chamadas ciências da vida, por muito
que isso possa parecer no texto abaixo. Tenho o maior respeito pelas
conquistas científicas feitas no último ano e meio, quer nas vacinas,
quer nos testes. Não sou um “especialista de covid” e espero que não
seja isso que quem lê as palavras que se seguem vá assumir. Ainda assim,
ao ver alguns dos cientistas que muito respeito a serem contrariados
pelas autoridades de saúde, achei que devia dar aqui os meus 50 cêntimos
de Ciência Física generalizada por vários domínios económicos e também
por motivos profissionais. Não que isso me dê uma especial superioridade
intelectual, mas apenas uma experiência de aplicação mais variada do
pouco que fui aprendendo na vida.
Estão
a ver aquelas cenas dos filmes no espaço em que o astronauta fica solto
da sua nave e à deriva no espaço na direção do planeta mais próximo? O
ator está sempre muito confortável, o que corresponde àquilo que é
esperado pela Física. Há cerca de 100 anos, Einstein, numa das suas
“experiências mentais”, imaginou uma pessoa a cair no campo gravítico
dentro de uma caixa sem janelas. Como quer a caixa, quer a pessoa, caiem
com a mesma velocidade e aceleração – coisa já imaginada por Galileu
300 anos antes –, então a pessoa não vai sentir a gravidade. Ora,
concluiu o génio alemão, se a pessoa não sente a força, mas nós vemos
que ela cai, então a gravidade é uma força “aparente” porque depende de
posição de quem a “vê”. O astronauta solto da nave vai andar muito
confortável a viajar na direção do planeta mais próximo, sem sentir
qualquer força, até que se vai esborrachar contra todas as partículas
que chegaram ao planeta antes dele. O que, sendo muito “fixe” em termos
científicos, é uma bela porcaria.
“Aparente”
é uma forma de expressão, porque quando tenho que subir 17 andares
pelas escadas, nada daquilo me parece “aparente”. O que acontece é que
se não houvesse chão, isto é, se não existissem seis mil e tal
quilómetros de rochas e outras matérias que chegaram primeiro e que
estão por debaixo de nós, nós não sentiríamos a gravidade. E esta é a
principal característica destas forças “aparentes”: não as sentimos se
não sofrermos uma influência externa. Mas se tentarmos ir no sentido
contrário do movimento, se tentarmos voar ou, simplesmente, se não
sairmos do mesmo sítio, aí vamos sentir. Não a gravidade, mas o esforço
de a contrariar.
O
que Einstein descobriu foi que o que gera aquilo a que chamamos
gravidade é o espaço não ser todo igual como a nossa intuição nos diz.
Em termos simples, à medida que nos aproximamos de uma massa enorme,
como um planeta, os “pontos do espaço vão ficando mais próximos”, o que
faz com que nos movimentemos no sentido do planeta e não no sentido
oposto. A causa de tudo isto é a expansão do espaço e do tempo no
universo, não tem nada a ver connosco, nem mesmo com o nosso planeta. É
um efeito ao nível de todo o universo e, por isso, quem está de fora vê a
força, mas nós não a sentimos. Não a sentimos a puxar (se não houvesse
chão), mas sabemos que é impossível ir no sentido contrário sem esforço.
Sabemos que o calhau que vemos no chão não vai voar, apesar de ninguém o
estar a segurar.
Todo
este cenário parece saído de um filme de ficção científica, mas, na
verdade, sabe-se há mais de 100 anos e sem isto, tecnologias
“domésticas” como o GPS, que hoje damos como certas, não funcionariam. O
que isto tem de contraintuitivo é que temos um “movimento” global que
arrasta os componentes do sistema. A força não deriva de uma propriedade
intrínseca dos objetos que vemos, mas de uma tendência global que faz
com que os vários constituintes do sistema interajam entre si. Não
porque os componentes se atraiam ou tendam a ligar-se, mas porque o
“movimento” global assim o impõe. E não é só um sistema transcendente
como o cosmos que se porta desta forma, mas também a economia, as
eleições, a inteligência e, o motivo deste artigo, a genética.
O
mais pequeno dos vírus conhecidos é uma sequência de 5500 nucleótidos,
isto é, uma de quatro moléculas: Adenina, Timina, Guanina e Citosina.
Quimicamente pouco interessa, o que importa é que em cada posição vamos
ter uma de quatro possibilidades (A, T, C, G). Em princípio, um qualquer
nucleótido pode seguir-se a outro porque não haverá nenhuma preferência
química na sequência, logo são independentes à partida uns dos outros.
Fazendo as contas assumindo que são independentes, o vírus pode ter 4
levantado a 5500 configurações diferentes, ou seja, cerca de 10
levantado a 3300 (um “1” com 3300 zeros a seguir). Como se calcula que o
universo inteiro tenha cerca de 10 levantado a 80 partículas, haveria
muito mais configurações possíveis de vírus do que partículas no
universo. Ou seja, isto é absurdo. Ora, se os nucleótidos não podem ser
independentes, então são dependentes porque quanto mais dependentes uns
dos outros forem, menor é o número de combinações possíveis (ex: se eu
impusesse que os cães tinham que ser todos às riscas brancas e pretas, o
número de raças caninas seria próximo ao das raças de zebras). E faz
sentido que sejam muito dependentes porque o número tem que descer de 10
levantado a 3300 para algo aceitável com aquilo que é observado
Existe,
então, uma interdependência entre os vários nucleótidos? Os números
parecem indicar que sim, mas se essa dependência fosse química
existiriam, assim, sequências rígidas, as mutações seriam pouco
prováveis e seríamos todos vírus. Então de onde vem essa
interdependência que faz com que o número de possibilidades seja de
facto pequena? Vem de uma força que os nucleótidos não “sentem”, mas
para quem vê de fora é como se existisse. Uma força “aparente”, como a
gravidade, e que deriva do mecanismo de seleção natural. Este mecanismo
faz com que as mutações que são bem-sucedidas (isto é, as que promovem
uma reprodução mais eficiente dos vírus) sejam raras, e isso leva a que
muito poucas combinações de nucleótidos possam sobreviver. As moléculas
do vírus, por si, não sentem a força, mas o vírus como um todo sente-o
no sentido em que aqueles nucleótidos se atraem uns aos outros para que o
organismo como um todo seja bem-sucedido. Ou seja, não existe uma
propriedade intrínseca dos nucleótidos que façam com que numa posição
tenha que ser aquele em particular. Mas a evolução do vírus como um todo
faz com que uma força “aparente” proíba o aparecimento de outros.
Demasiado
abstrato? Um pouco e bastante contraintuitivo, ao ponto de ter ouvido
nas últimas semanas que a seleção natural não era uma lei (rebola na
campa, Darwin!). Mas tal como o calhau na rua não vai sair a voar porque
o universo está em expansão, há um conjunto de mutações do vírus que
não vão acontecer devido ao efeito global da seleção natural. Se
percebermos que a seleção natural funciona como uma força que faz os
nucleótidos organizarem-se preferencialmente numa dada combinação e que
as mutações bem-sucedidas são muito raras, então já conseguimos entender
o sentido que a “força” terá. Quanto menos gravoso for o vírus para o
seu hospedeiro, mais tempo este anda nas festas e mais hospedeiros o
vírus visita. Ou seja, a “força” faz com que as variantes de um vírus
sejam sucessivamente menos gravosas, sendo que as mais gravosas devem
ser encaradas como o calhau que voa espontaneamente.
No
entanto, e ao contrário de vários cientistas nacionais que tenho em
muito boa conta, a OMS vem reforçar que o SARS-COVID-2 pode evoluir para
variantes mais gravosas. Esta posição da OMS, para além de, na minha
modesta opinião, revelar uma ligeireza teórica surpreendente, traz
também consequências danosas à vida de biliões de pessoas no mundo
inteiro. Não é possível surgir uma variante mais gravosa para o ser
humano por imposição matemática de uma lei conhecida há 150 anos. Os
biólogos sabem-no, os políticos que o aceitem. Cabe-nos a nós mostrar
aos políticos que devem seguir a ciência e não um qualquer amanuense que
se diz cientista. Fica o meu contributo.
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