terça-feira, 1 de março de 2022

A gravidade das variantes

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Não é possível surgir uma variante mais gravosa para o ser humano por imposição matemática de uma lei conhecida há 150 anos – a lei da seleção natural. Os biólogos sabem-no, os políticos que o aceitem. João Pires da Cruz para o Observador:


Não sou químico, biólogo, bioquímico, médico, enfermeiro, nem tenho qualquer título formal na área das chamadas ciências da vida, por muito que isso possa parecer no texto abaixo. Tenho o maior respeito pelas conquistas científicas feitas no último ano e meio, quer nas vacinas, quer nos testes. Não sou um “especialista de covid” e espero que não seja isso que quem lê as palavras que se seguem vá assumir. Ainda assim, ao ver alguns dos cientistas que muito respeito a serem contrariados pelas autoridades de saúde, achei que devia dar aqui os meus 50 cêntimos de Ciência Física generalizada por vários domínios económicos e também por motivos profissionais. Não que isso me dê uma especial superioridade intelectual, mas apenas uma experiência de aplicação mais variada do pouco que fui aprendendo na vida.

Estão a ver aquelas cenas dos filmes no espaço em que o astronauta fica solto da sua nave e à deriva no espaço na direção do planeta mais próximo? O ator está sempre muito confortável, o que corresponde àquilo que é esperado pela Física. Há cerca de 100 anos, Einstein, numa das suas “experiências mentais”, imaginou uma pessoa a cair no campo gravítico dentro de uma caixa sem janelas. Como quer a caixa, quer a pessoa, caiem com a mesma velocidade e aceleração – coisa já imaginada por Galileu 300 anos antes –, então a pessoa não vai sentir a gravidade. Ora, concluiu o génio alemão, se a pessoa não sente a força, mas nós vemos que ela cai, então a gravidade é uma força “aparente” porque depende de posição de quem a “vê”. O astronauta solto da nave vai andar muito confortável a viajar na direção do planeta mais próximo, sem sentir qualquer força, até que se vai esborrachar contra todas as partículas que chegaram ao planeta antes dele. O que, sendo muito “fixe” em termos científicos, é uma bela porcaria.

“Aparente” é uma forma de expressão, porque quando tenho que subir 17 andares pelas escadas, nada daquilo me parece “aparente”. O que acontece é que se não houvesse chão, isto é, se não existissem seis mil e tal quilómetros de rochas e outras matérias que chegaram primeiro e que estão por debaixo de nós, nós não sentiríamos a gravidade. E esta é a principal característica destas forças “aparentes”: não as sentimos se não sofrermos uma influência externa. Mas se tentarmos ir no sentido contrário do movimento, se tentarmos voar ou, simplesmente, se não sairmos do mesmo sítio, aí vamos sentir. Não a gravidade, mas o esforço de a contrariar.

O que Einstein descobriu foi que o que gera aquilo a que chamamos gravidade é o espaço não ser todo igual como a nossa intuição nos diz. Em termos simples, à medida que nos aproximamos de uma massa enorme, como um planeta, os “pontos do espaço vão ficando mais próximos”, o que faz com que nos movimentemos no sentido do planeta e não no sentido oposto. A causa de tudo isto é a expansão do espaço e do tempo no universo, não tem nada a ver connosco, nem mesmo com o nosso planeta. É um efeito ao nível de todo o universo e, por isso, quem está de fora vê a força, mas nós não a sentimos. Não a sentimos a puxar (se não houvesse chão), mas sabemos que é impossível ir no sentido contrário sem esforço. Sabemos que o calhau que vemos no chão não vai voar, apesar de ninguém o estar a segurar.

Todo este cenário parece saído de um filme de ficção científica, mas, na verdade, sabe-se há mais de 100 anos e sem isto, tecnologias “domésticas” como o GPS, que hoje damos como certas, não funcionariam. O que isto tem de contraintuitivo é que temos um “movimento” global que arrasta os componentes do sistema. A força não deriva de uma propriedade intrínseca dos objetos que vemos, mas de uma tendência global que faz com que os vários constituintes do sistema interajam entre si. Não porque os componentes se atraiam ou tendam a ligar-se, mas porque o “movimento” global assim o impõe. E não é só um sistema transcendente como o cosmos que se porta desta forma, mas também a economia, as eleições, a inteligência e, o motivo deste artigo, a genética.

O mais pequeno dos vírus conhecidos é uma sequência de 5500 nucleótidos, isto é, uma de quatro moléculas: Adenina, Timina, Guanina e Citosina. Quimicamente pouco interessa, o que importa é que em cada posição vamos ter uma de quatro possibilidades (A, T, C, G). Em princípio, um qualquer nucleótido pode seguir-se a outro porque não haverá nenhuma preferência química na sequência, logo são independentes à partida uns dos outros. Fazendo as contas assumindo que são independentes, o vírus pode ter 4 levantado a 5500 configurações diferentes, ou seja, cerca de 10 levantado a 3300 (um “1” com 3300 zeros a seguir). Como se calcula que o universo inteiro tenha cerca de 10 levantado a 80 partículas, haveria muito mais configurações possíveis de vírus do que partículas no universo. Ou seja, isto é absurdo. Ora, se os nucleótidos não podem ser independentes, então são dependentes porque quanto mais dependentes uns dos outros forem, menor é o número de combinações possíveis (ex: se eu impusesse que os cães tinham que ser todos às riscas brancas e pretas, o número de raças caninas seria próximo ao das raças de zebras). E faz sentido que sejam muito dependentes porque o número tem que descer de 10 levantado a 3300 para algo aceitável com aquilo que é observado

Existe, então, uma interdependência entre os vários nucleótidos? Os números parecem indicar que sim, mas se essa dependência fosse química existiriam, assim, sequências rígidas, as mutações seriam pouco prováveis e seríamos todos vírus. Então de onde vem essa interdependência que faz com que o número de possibilidades seja de facto pequena? Vem de uma força que os nucleótidos não “sentem”, mas para quem vê de fora é como se existisse. Uma força “aparente”, como a gravidade, e que deriva do mecanismo de seleção natural. Este mecanismo faz com que as mutações que são bem-sucedidas (isto é, as que promovem uma reprodução mais eficiente dos vírus) sejam raras, e isso leva a que muito poucas combinações de nucleótidos possam sobreviver. As moléculas do vírus, por si, não sentem a força, mas o vírus como um todo sente-o no sentido em que aqueles nucleótidos se atraem uns aos outros para que o organismo como um todo seja bem-sucedido. Ou seja, não existe uma propriedade intrínseca dos nucleótidos que façam com que numa posição tenha que ser aquele em particular. Mas a evolução do vírus como um todo faz com que uma força “aparente” proíba o aparecimento de outros.

Demasiado abstrato? Um pouco e bastante contraintuitivo, ao ponto de ter ouvido nas últimas semanas que a seleção natural não era uma lei (rebola na campa, Darwin!). Mas tal como o calhau na rua não vai sair a voar porque o universo está em expansão, há um conjunto de mutações do vírus que não vão acontecer devido ao efeito global da seleção natural. Se percebermos que a seleção natural funciona como uma força que faz os nucleótidos organizarem-se preferencialmente numa dada combinação e que as mutações bem-sucedidas são muito raras, então já conseguimos entender o sentido que a “força” terá. Quanto menos gravoso for o vírus para o seu hospedeiro, mais tempo este anda nas festas e mais hospedeiros o vírus visita. Ou seja, a “força” faz com que as variantes de um vírus sejam sucessivamente menos gravosas, sendo que as mais gravosas devem ser encaradas como o calhau que voa espontaneamente.

No entanto, e ao contrário de vários cientistas nacionais que tenho em muito boa conta, a OMS vem reforçar que o SARS-COVID-2 pode evoluir para variantes mais gravosas. Esta posição da OMS, para além de, na minha modesta opinião, revelar uma ligeireza teórica surpreendente, traz também consequências danosas à vida de biliões de pessoas no mundo inteiro. Não é possível surgir uma variante mais gravosa para o ser humano por imposição matemática de uma lei conhecida há 150 anos. Os biólogos sabem-no, os políticos que o aceitem. Cabe-nos a nós mostrar aos políticos que devem seguir a ciência e não um qualquer amanuense que se diz cientista. Fica o meu contributo.

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