A tergiversação em torno dessa empulhação, do gigantismo das big techs e de todos os seus nefandos corolários explica-se pelos trilhões acumulados pelos modernos robber barons. Fernão Lara Mesquita:
O
empreendedorismo é o domínio do instinto. Não é para quem quer é para
quem é. A política e seu produto por excelência na democracia — a lei — é
a superação da que rege o instinto e manda todo bicho “usar sua força
para comer o mais possível sempre que a ocasião se apresentar”, um
movimento concertado de defesa das presas contra os predadores que acaba
por ser acatado até por esses últimos quando a História os ensina a
pensar adiante da próxima refeição.
A
informática não mudou rigorosamente nada na essência das relações
humanas que já foi bem precisamente sintetizada no adágio de que “o
homem é o lobo do homem”. Ela criou uma reprodução matemática do mundo
real sujeita não mais às velocidades e multiplicações do universo da
História e do mundo físico mas às próprias a essa ciência abstrata, o
que subverteu violentamente as noções de espaço e tempo, fundamentos do
conhecimento humano, com implicações altamente disruptivas nas
aplicações que daí decorrem, especialmente as ligadas à produção e à
transação de bens e riquezas e, mais que para todas as outras, para a
capacidade de cada nação de impor leis precisas, estáveis e bem
delimitadas como têm de ser as das raras democracias de fato existentes.
Como
sempre, desde o controle do fogo, do arco e da roda e da domesticação
dos animais, das plantas e dos metais, essa disrupção proporcionou aos
“predadores alfa” da política e da economia explorar os vazios de
regulamentação que se abriram com a violência e o oportunismo que o
instinto lhes pede. Sob a bandeira da “reforma da humanidade” de sempre,
o Google auto-atribuiu-se o direito de mudar as regras do ciclo de vida
da informação espionando, indexando e tornando acessíveis para todo o
sempre os pormenores das manifestações de preferência e trocas de
informações entre cada um dos seres humanos sem pedir licença a ninguém,
ato criminalizado em todas as legislações do mundo para todas as
tecnologias não baseadas em bits.
Em
paralelo, na melhor técnica do malandro que atrai a vítima sempre com a
promessa de benefícios impagáveis, copiou e indexou a informação
coletada e sistematizada por profissionais de todos os campos do saber
em todos os tempos sem pagar direitos a quem trabalhou para produzi-la,
outro crime tipificado para todos os meios anteriores, e entregou o
produto desse saque planetário como um “presente grátis” a quem antes
tinha de pagar por ele, “apenas” em troca da livre espionagem dos
hábitos, preferências, intimidades e roteiros dos consumidores desse
“serviço”. E então amealhou uma fortuna indecente vendendo os segredos
de cada eleitor e cada consumidor aos tubarões da política e da
economia.
Escancarada
a porta, por lá passaram as boiadas da Amazon e do Facebook, as
“ferrovias” de hoje com seu séquito de robber barons de vida curta,
comprados com baratos bilhões para colocarem-se à salvo sem incomodar ou
concorrer, e todo o resto das mazelas que conhecemos, com as Apples no
fim da fila, explorando nas chinas da vida o trabalho escravo pelo qual
seriam presas em casa e arrastando todos os seus concorrentes para o
mesmo atalho que matou, numa só cajadada, séculos de conquistas dos
trabalhadores nas democracias, tudo sob o silêncio cúmplice da política
podre que finge não entender a exata semelhança entre os crimes dos
donos das big techs e seus caronas de hoje e os dos robber barons de
ontem.
Agora,
montados nos trilhões de dólares amealhados com esse tipo de
“competência”, já se sentem fortes o bastante para desafiar as maiorias
de frente com a censura explícita e a incineração virtual dos “hereges”
em autos-de-fé públicos mediante os quais ficam “cancelados” não só das
tribunas a partir das quais a política captura os votos necessários para
deter essa gigantesca falcatrua como também da vida econômica que
migrou totalmente para a reprodução virtual do mundo real.
Em
maio de 2014, depois que a Agência de Proteção de Dados da Espanha
reassegurou a um professor o direito de ter o seu passado esquecido, a
União Européia como um todo, mais “freguesa” que proprietária das mega
multiplataformas da internet, restabeleceu o princípio de que o futuro
da vida digital deve ser estabelecido pelas pessoas, suas leis e suas
instituições democráticas e não por qualquer grupo de moleques montados
numa tecnologia nova o bastante para não ser imediatamente compreendida,
em seus meandros e processos, nem pelos seus usuários, nem muito menos
pelos legisladores, o que recoloca nos seus devidos termos a questão
decisiva deste início de 3º Milênio marcado pelo desvio do “capitalismo
de espionagem” (surveillance capitalism) que só pode prosperar com a
morte da democracia.
O
atual impasse prende-se mais à corrupção que às dificuldades técnicas
envolvidas. Não é preciso inventar nada de conceitual ou filosoficamente
novo, como querem fazer crer os enganadores de sempre, apenas submeter
as big techs e suas praças públicas virtuais às mesmas leis que
enquadraram os robber barons do passado e garantem o exercício dos
direitos fundamentais do homem nas praças públicas físicas (à
propriedade, à sua intimidade #ownyourdata, à liberdade de crença e
expressão, ao devido processo, etc.), impondo aos tecnólogos, como
condição para operar seus aplicativos, plataformas e redes, a busca das
soluções necessárias para implementar essas garantias.
Sim, conseguir são outros 500. Mas ser obrigado a tentar é tudo que sempre fez a humanidade andar para a frente…
Quanto
ao gigantismo que desenvolveram violando as leis que todos os seus
concorrentes eram obrigados a cumprir, vale o mesmo princípio. A
democracia se reapresentou ao mundo em 1787 com a missão de evitar a
criação de superpoderes no universo da política com a bandeira de que
somente cada indivíduo tinha o direito de escolher o seu modo de
alcançar a felicidade e definir o que era ou não “fake” para ele em
matéria de pensamentos e crenças, o que lhe deu um impulso inicial
brilhante mas não suficiente.
Na
virada do século 19 para o 20, refém da corrupção gerada pelo seu
principal “defeito de fabricação” que foi a blindagem, ainda que
temporária, dos mandatos dos representantes eleitos contra seus
eleitores, acrescentou à sua lista de objetivos prioritários, mediante o
aparato antitruste que só pôde impor armando a mão do eleitor para dar a
palavra final sobre cada ato dos seus representantes, a prevenção da
criação de superpoderes também na economia privada, o que pôs em cena o
único “estado de bem estar social” que jamais se materializou no mundo
real: não o que o socialismo prometia autorizando o governante de
plantão a distribuir dinheiro alheio entre seus amigos e
correligionários mas aquele que Theodore Roosevelt dotou do moto
continuo naturalmente invulnerável à politicagem da limitação da
competência para açambarcar mercados pela manutenção obrigatória do grau
mínimo de competição necessário em cada setor da economia para obrigar
os empreendedores a disputar trabalhadores aumentando salários e
consumidores reduzindo preços, com o Estado estritamente no papel de
árbitro.
Foi
esse o truque simples que fez dos Estados Unidos o que são (estes em
que o PIB do estado de Nova York equivale ao do Brasil inteiro e o dos
outros 49 estados é “lambuja” e não aquele que nossa imprensa mostra) e
propiciou que arrastassem a humanidade inteira atras de si para
patamares mais altos de liberdade, afluência e progresso da ciência ao
longo de escassos ¾ do século 20 que os alcançados na soma de todas as
centenas de séculos anteriores.
Agora
quer a horda dos reacionários a volta ao padrão anterior a 1787, com
sua igreja ditando o que é e o que não é “verdade” e calando quem
discorda na marra em nome da “defesa da democracia”.
“FAKE“!
A
tergiversação em torno dessa empulhação, do gigantismo das big techs e
de todos os seus nefandos corolários explica-se pelos trilhões
acumulados pelos modernos robber barons, que engraxam tanto os que
correm atras do poder de explorar o próximo pela via da economia quanto
os especializados em faze-lo pela da política, muito mais que por
qualquer dificuldade técnica para corrigir o rumo e aplicar a elas
regulamentos honestos, democráticos e limpos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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