Por que não abrir mão de todos os racismos? Esse apego ao direito a um racismo específico quase dá a impressão, em alguns momentos, de que o racismo deve ser muito agradável para a pessoa que o sente, e que abrir mão dele custa tanto quanto abrir mão de carboidratos. Via Crusoé, a crônica de Alexandre Soares Silva:
Não
se deve gostar de políticos, eu sei. Ninguém precisa falar isso pra
mim. Durante anos repeti isso como um papagaio anarquista e, apesar de
sempre falar isso sem pensar muito, agora que pensei continuo achando a
mesma coisa.
Mas
o Boris Johnson. “Ah, que tem, não vai me falar que você gosta do Boris
Johnson.” Meio que sim, meio que gosto. Gosto do jeito tropeçante, do
cabelo cor de palha dançando ao vento mesmo quando não tem vento nenhum
na sala. Aquele vídeo dele jogando rugby com crianças e jogando um
infante brutalmente no chão, caindo com todo o peso em cima, e
comemorando depois, é magnífico. E ele é capaz de recitar Homero de
cabeça durante longos minutos. Tem um vídeo no Youtube mostrando isso.
A
maior parte dos conservadores que leio o odeiam, no entanto. Acusam
Boris Johnson de não ser aquela figura do folclore chamada “um
conservador de verdade”. Mas acredito mais na possibilidade de
avistamentos de abomináveis homens das neves do que na de alguém, algum
dia, encontrar um conservador de verdade em algum lugar.
De qualquer forma, eis o que escreveu o jornalista Peter Hitchens:
“A mente de Mr Johnson não é conservadora.
Ele é um boêmio do norte de Londres. É rico o suficiente para não
entender o quanto as escolas públicas são ruins, e o quanto estão cheias
de doutrinação. Desde que era prefeito de Londres, ele se cercou de
assistentes que encorajam todo tipo de pensamento vago de esquerda que esteja na moda. Não há nada conservador em Al ‘Boris’ Johnson. É o novo Tony Blair, que sacrificou o país para salvar o Partido Conservador.”
Neste
momento, muitos deles estão um pouco menos infelizes, agora que Johnson
anunciou o fim da obrigatoriedade das máscaras e do certificado de
vacinação. “Vamos restaurar nossas antiquíssimas liberdades. Vamos
confiar no julgamento do povo inglês,” disse Boris Johnson. “Somos os
primeiros a emergir da onda da Ômicron.”
Boris
Johnson talvez só esteja fazendo isso para sobreviver, depois de ter a
sua posição abalada pelo escândalo das duas festas de que fez parte.
Talvez caia de vez. Por mim, tanto faz. De vez em quando vou pegar
aquele vídeo dele recitando Homero para me inspirar a estudar grego. Não
preciso que ele esteja em Downing Street. Minha simpatia por ele não
vai até o ponto um pouco tolo de torcer por ele como político.
Mas
o meu espanto é se ele cair por essas festas mesmo. Pessoalmente estou
sofrendo aqui pensando que em breve não vou ter mais desculpa para
recusar convites, e Boris Johnson vai em duas festas quando toda a sua
sobrevivência política depende de não ir a festas. Não era melhor ir pra
casa mais cedo, ler Homero, ver um filme, beber Jerez vendo MasterChef?
Deve ser muito bom estar tão à vontade no mundo em que você arrisca a
sua carreira pra ir a uma festa, porque estar vestido formalmente na
frente de semidesconhecidos é mais agradável pra você do que ir pra casa
botar uma calça de moletom.
Nunca
entendo o motivo de as pessoas saírem de casa. Suponho que tenham casas
ruins. Aquela multidão de pessoas na avenida, paradas, vendo teatro de
rua ou coisa que o valha, todas com casas ruins. Aquelas pessoas paradas
no shopping vendo a tevê que fica na vitrine, o que diabos é aquilo?
Amundsen e Scott e sei lá mais quem atravessando o polo norte de lá pra
cá – só porque tinham uma biblioteca ruim em casa. Se tivessem as obras
completas de Simenon não fariam isso. Na verdade um simples site de
compartilhamento de torrents teria evitado o afundamento trágico do
Shackleton.
Sobre
o artigo do Antônio Risério na Folha desta semana, que causou tanta
celeuma, bulha, alarido, banzé, matinada, barafunda, zaragata e
quiproquó, com carta aberta contra, carta aberta a favor (assinei,
embora ache cartas abertas sempre um pouco bregas), o que me pergunto é:
por que tanta vontade de defender que uma opinião negativa sobre uma
raça específica não pode ser racismo? Não seria mais fácil voltar a não
enxergar cor de pele, como fomos ensinados a fazer quando crianças? Não
seria mais fácil dizer “sim, pode haver racismos de todos os lados; isso
é ruim, e devemos combater isso“?
Seria
facílimo. Difícil é manter o oposto. Imagine a quantidade de energia
mental necessária para se enfiar em explicações convolutas do tipo
“racismo reverso”, “racismo estrutural” etc, que só enganam de verdade
alguns poucos ingênuos. A energia mental dispendida por uma única pessoa
para acreditar que racismo só existe se for cometido por um opressor
contra um oprimido seria capaz de manter uma cidade iluminada por 50
anos. Mas mesmo assim muita gente está lutando com grande tenacidade
pelo direito de as pessoas continuarem vilipendiando uma raça
específica.
Por
quê? Por que não abrir mão de todos os racismos? Esse apego ao direito a
um racismo específico quase dá a impressão, em alguns momentos, de que o
racismo deve ser muito agradável para a pessoa que o sente, e que abrir
mão dele custa tanto quanto abrir mão de carboidratos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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