O racismo de negros contra brancos, embora ignorado ou deliberadamente ocultado pela grande imprensa em geral, vem se intensificando na medida em que a extrema-esquerda identitária galga posições de poder e influência na sociedade. Flavio Gordon para a Gazeta do Povo:
No último sábado, 15 de janeiro, meu colega antropólogo Antônio Risério publicou na Folha de S. Paulo um artigo corajoso
abordando um tema tabu no debate público contemporâneo: o racismo de
negros contra brancos, um fenômeno que, embora ignorado ou
deliberadamente ocultado pela grande imprensa em geral, vem se
intensificando na medida em que a extrema-esquerda identitária (da qual
essa mesma imprensa atua como porta-voz) galga posições de poder e
influência na sociedade.
Partindo
de vários casos ocorridos nos EUA – e, sintomaticamente, naturalizados
ou suprimidos do noticiário –, Risério afirma que os episódios se
sucedem, “mas a ordem unida ideológica manda fingir que nada aconteceu”.
E conclui: “Engana-se, mesmo com relação ao Brasil, quem não quer ver
racismo, separatismo e mesmo projeto supremacista em movimentos negros. O
retorno à loucura supremacista aparece, agora, com discurso de
esquerda... O neorracismo identitário é exceção ou norma? Infelizmente,
penso que é norma. Decorre de premissas fundamentais da própria
perspectiva identitária, quando passamos da política da busca da
igualdade para a política da afirmação da diferença”.
Para
surpresa de ninguém, o artigo provocou as reações típicas da
extrema-esquerda e dos inocentes úteis que, sem o saber, percebem e
sentem a realidade de acordo com a propaganda ideológica do
identitarismo woke, veiculada mediante a repetição incessante de
slogans-chiclete na grande imprensa, na indústria do entretenimento, na
publicidade, nas escolas, na vida universitária e até mesmo nas igrejas.
Daí que, em lugar de críticas racionais, que tentassem lidar
minimamente com os argumentos e os dados apresentados no texto, o que se
viu foi aquela pose histriônica de indignação moral (e de quase repulsa
física) que, no espírito do militante embrutecido pela linguagem
ideológica, prepara e justifica os pedidos de censura, os desejos
homicidas, a ânsia pelo expurgo do objeto de escândalo. Não espantaria
que, entre a turba totalitária e comunistoide, muitos houvessem
dispostos a aplaudir o eventual fuzilamento do “criminoso” que ousou
borrar a autoimagem edulcorada dos guerreiros da justiça social.
Nos bas-fonds da blogosfera de extrema-esquerda – em portais como esse,
por exemplo –, o texto foi sumariamente catalogado como “racista”. Por
óbvio, pela lógica rudimentar da militância racialista, não há
escapatória: quem quer que não compactue com a agenda identitária só
pode ser racista. Mas racismo, por definição, significa a atribuição de
determinados comportamentos, disposições e qualidades de caráter fixos a
uma dada “raça” – com muitas aspas no termo, que não significa outra
coisa que um conjunto de traços fenotípicos (cor de pele, coloração dos
olhos, textura do cabelo, espessura do nariz etc.) artificialmente
agrupados. Assim, ao longo da história, racistas já decretaram
peremptoriamente coisas como: “negros” são indolentes e intelectualmente
limitados; “índios” são preguiçosos e inconstantes; “judeus” são
avarentos e gananciosos, e assim por diante.
Ora,
é justamente o contrário o que Risério diz no artigo. Segundo ele, ser
racista não é um atributo inerentemente associado a nenhuma “raça” em
particular. O racismo – variante pseudocientífica do etnocentrismo, que,
desde Claude Lévi-Strauss,
sabemos ser uma tendência universal no homem – é um sentimento
potencialmente presente em todo grupo étnico e em qualquer indivíduo.
Agora, uma coisa é a constatação desse fato social, por assim dizer;
outra, muito diferente, é o nosso posicionamento moral em relação a ele.
Que se constate a universalidade antropológica do racismo não significa
que não se deva condená-lo. Ao contrário, ao compreender adequadamente o
fenômeno, temos mais ferramentas para manter vigiante o espírito.
É
o que faz Risério, ao afirmar categoricamente que “o racismo é
inaceitável em qualquer circunstância”. Ou seja, o antropólogo baiano
faz uma leitura não racista – e antirracista – do racismo. Já seus
acusadores fazem justamente o oposto: uma interpretação racista do
racismo, ao sugerir que os “brancos” são inerentemente (ou naturalmente)
racistas, tal como os “negros” seriam indolentes, os “indígenas”,
preguiçosos e os “judeus”, avarentos. A reação da militância identitária
ao artigo fornece uma prova suplementar do acerto da tese de Risério.
Note-se
que, curiosamente, os detratores acusam o autor de advogar em favor da
tese de um pretenso “racismo reverso”, que eles negam existir. Eis aí um
grande espantalho, já que Risério não usa a expressão em momento algum.
Porque, de fato, não existe racismo reverso. O que existe é racismo –
seja de “brancos” contra “negros”, ou de “negros” contra “brancos”, de
“negros” contra “asiáticos”, de “asiáticos” contra “negros”, de
“brancos” contra “brancos” (como no caso da Alemanha nazista), de
“negros” contra “negros” (como no caso de Ruanda), e assim por diante.
Eu,
que também venho abordando o tema há algum tempo, digo sem medo de
errar: Risério tem razão. O que temos visto surgir nos EUA – e ao
contrário do que alegam os extremistas identitários, que acusam o autor
da prática de cherry-picking – é quase uma epidemia de ataques racistas
cometidos por “negros” contra membros de outras etnias (ver, por
exemplo, esse meu artigo sobre o tema).
O que acontece é que, contrariamente ao que aconteceria se os papéis de
vítima e agressor se invertessem, o fenômeno não causa escândalo nem
indignação. Frequentemente, nem sequer é noticiado. Tudo se passa como
se tivéssemos, nesse caso, uma espécie de racismo permitido.
Essa parece também ser a percepção da população americana sobre o fenômeno do racismo no país. Pelo menos se estiver correta uma pesquisa realizada em 2013 pelo instituto Rasmussen Reports,
cuja conclusão foi a de que a maioria dos americanos acha que, hoje,
“negros” são mais racistas do que “brancos”, “hispânicos” e demais
etnias. Significativamente, a opinião geral é mantida entre os “negros”,
dos quais 31% acham que a maioria dos negros é racista, e apenas 24%
acreditam que a maioria dos brancos é racista.
Mas,
embora Risério tenha tomado a América por objeto principal, é preciso
lembrar que o mesmo fenômeno já se encontra em estado avançado no
Brasil, pelo menos ao nível da retórica e da linguagem, cuja virulência
anuncia, há tempos, a violência racial futura. Como quando, por exemplo,
uma ministra de Estado
declara que “A reação de um negro de não querer conviver com um branco,
eu acho uma reação natural. Quem foi açoitado a vida inteira não tem
obrigação de gostar de quem o açoitou”. Ou uma jornalista afirma
que, em seu meio profissional, “os brancos se conhecem e se escolhem”,
sugerindo, implicitamente, que os “negros” devam fazer o mesmo.
Foram
colegas meus e do Risério, aliás, que, com coragem e presciência,
alertavam já em 2007 sobre os perigos do racialismo identitário para a
sociedade brasileira, sobretudo quando consagrado em lei. Refiro-me aos
antropólogos – alguns dos quais meus professores de faculdade – Peter
Fry, Yvonne Maggie, Marcos Chor Maio, Simone Monteiro e Ricardo Ventura
Santos, autores de Divisões Perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo,
um livro fundamental para quem quer entender como chegamos no ponto em
que estamos, em que, sob pretexto do combate ao racismo, as mais cruas
formas de racismo são orgulhosamente manifestas.
Por
fim, concluo com um texto importante do brilhante economista (negro)
Walter Williams, falecido em 2020, que chega a caracterizar os
militantes do movimento negro contemporâneo – formado tanto por
indivíduos “negros” quanto por indivíduos “brancos” – como “os novos racistas da América”.
Williams recorda a sua infância na Filadélfia, num tempo em que
crianças com a sua cor de pele estavam sujeitas a toda sorte de insultos
e agressões racistas. “Lembro-me de, nos anos 1940, eu e meu primo
sendo perseguidos e expulsos de Fishtown e Grays Ferry, dois bairros
predominantemente irlandeses, e só parando de correr ao chegar nos
bairros negros do Norte ou do Sul da cidade” – escreve, apenas em
seguida acrescentar: “Hoje tudo mudou. A maioria dos ataques raciais é
cometida por negros”. E concluir, pesaroso: “E o pior de tudo é ver
negros, muitos dos quais viveram os tempos dos linchamentos, das leis
Jim Crow e do racismo escancarado, se calando diante do problema… O
silêncio dos negros em face do racismo dos negros é uma das mais grave
traições à luta pelos direitos civis, encampada tanto por americanos
negros quanto por brancos”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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