A pregação antivax de políticos e influenciadores, meras caricaturas de conservadores, coloca o proselitismo político acima das vidas humanas atingidas pela desconfiança injustificada aos imunizantes aprovados pelos órgãos técnicos competentes. Alexandre Borges para a Gazeta do Povo:
A
repugnante visita de políticos governistas a parentes de uma criança
que teve uma parada cardíaca pouco depois de vacinada é uma lembrança
trágica dos crimes e imoralidades cometidos repetidamente em nome da
"direita". É possível abraçar o conservadorismo e ser tão desumano ao
mesmo tempo? Permita-me argumentar que não.
Não
vou apelar para golpes abaixo da linha de cintura, como salientar que a
pauta antivax mora no coração de gente como Beatrix Von Storch e seu
"Alternativa para a Alemanha", já que há políticos e influenciadores
antivacina e anticiência em todos os lados do espectro político. Há
militante autodenominado de esquerda que associa vacina a conspirações
lisérgicas da indústria farmacêutica e, obviamente, burrice não tem
exclusividade ideológica, mas há uma incompatibilidade essencial no
discurso antivax com o que entendo por conservadorismo.
Muitos
dos influenciadores mais importantes da direita americana caíram nessa
esparrela, mas quero crer que a motivação por trás desse lamentável
equívoco é o espírito libertário e anti-estado que tradicionalmente
motivou o conservadorismo nos EUA. Foi um erro histórico parecido com o
que cometeu Barry Goldwater, em 1964, com uma posição em relação aos
direitos civis que contribuiu decisivamente para que a injusta fama de
racista fosse atribuída até hoje aos republicanos.
A
posição libertária antivacina nos EUA despreza os fundamentos mais
essenciais do conservadorismo moderno, como concebido pelo seu
incontestável pai, o irlandês Edmund Burke (1727-1797), e seguidas por
alguns dos mais importantes formuladores dos conceitos conservadores
como o inglês Michael Oakeshott (1901-1990) e o americano Russell Kirk
(1918-1994).
Burke
foi muito atacado, ainda em vida, por ter sido contra a Revolução
Francesa e a favor da Revolução Americana, o que muitos dos seus
detratores viram como uma incoerência. Um dos mais célebres adversários
de Burke, antes amigo, foi o revolucionário inglês Thomas Paine
(1737-1809), apoiador apaixonado e protagonista das duas revoluções
citadas (para conhecer em detalhes esse histórico embate, recomendo "O
Grande Debate", de Yuval Levin). Paine foi um dos mais estridentes
denunciadores dessa suposta incoerência de Burke.
O
irlandês se defendeu explicando que, na sua visão, há uma dupla
natureza humana: a primeira, universal, fornecida igualmente a todos nós
pelo Criador. A segunda, circunstancial e diversa, moldada pelas
condições históricas e culturais específicas que cada indivíduo absorve
ao longo da vida. Para Burke, a Revolução Americana respeita as "duas
naturezas", enquanto sua contraparte francesa, pelo contrário, seria
oposta a ambas.
Conceito
A
"primeira natureza" repudia a crueldade, o arbítrio e o cerceamento
injustificado da liberdade humana. No caso americano, a metrópole
submeteu os colonos a humilhações e ao jugo voluntarista e injusto de
George III ao criar um conjunto inaceitável de leis que ignoravam a
condição destes de cidadãos britânicos plenos. A "segunda natureza"
americana foi desrespeitada, na visão burkeana, pelo sentimento de
liberdade e autodeterminação forjados pelos colonos ao longo de décadas
de desenvolvimento, crescimento e enriquecimento de uma população vasta,
independente, briosa e ciosa de seus direitos. A ruptura, para Burke,
seria até um prejuízo menor se comparada a ter um enorme contingente de
britânicos revoltados com o próprio governo no seio do império.
Já
no caso jacobino, toda a insanidade assassina dos revolucionários, em
nome de princípios ideológicos abstratos e sem correspondência na
cultura, na tradição e nos costumes franceses, era inaceitável para uma
concepção conservadora da política. Ao ignorar os direitos mais
fundamentais dos cidadãos e ainda tentar implementar, de forma
discricionária e ditatorial, um regime baseado em teorias, os jacobinos
desrespeitavam as duas naturezas humanas e Burke não tinha outra opção a
não ser se opor.
A
pregação antivax de políticos e influenciadores, meras caricaturas de
conservadores, coloca o proselitismo político acima das vidas humanas
atingidas pela desconfiança injustificada aos imunizantes aprovados
pelos órgãos técnicos competentes, o que está em franca contradição com a
primeira natureza humana. Some-se a isso uma ignorância à arraigada
cultura vacinal do brasileiro, forjada por anos de sucesso do PNI, e
temos a segunda natureza igualmente violentada.
Burke
seria evidentemente a favor da vacinação, da ciência e da preservação
de tantas vidas quanto possível. E, claro, alvo da sanha de mentes
autoritárias, oportunistas ou inescrupulosas. A posição conservadora na
política nunca foi ou será fácil, mas quem busca o conforto da alma em
teorias e abstrações políticas que se sobrepõem à natureza humana, como
entendida pelo pai do conservadorismo, não tem lugar na direita que
merece este nome.
Para
não termos que lidar, por décadas, com mais rótulos pejorativos, é
preciso rejeitar com urgência e da forma mais explícita e veemente
possível o discurso antivax das hostes direitistas. Ou amargar o lugar
nada honroso de gente como Barry Goldwater na história.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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