O meu voto para 2022 é que tentemos restaurar a aristocrática democracia das maneiras que distingue o Ocidente. Texto do professor João Carlos Espada para o Observador:
1
Este voto pode certamente parecer peculiar quando assistimos por todo o
lado a uma crescente guerra irredentista entre tribalismos rivais. Mas é
em parte por isso mesmo que gostaria de exprimir um voto antiquado a
favor de um pluralismo tranquilo — que tenho gosto em associar a uma
aristocrática democracia das maneiras.
O
conceito de ‘aristocrática democracia das maneiras’ é certamente
estranho às culturas políticas autoritárias e revolucionárias, da
chamada esquerda ou da chamada direita — que em tudo descobrem guerras
irredentistas entre tribos, sistemas ou regimes rivais. Mas, de certa
forma por isso mesmo, é um conceito crucial nas culturas políticas
liberais não-revolucionárias e também não-rebeldes — em rigor, também
não-militantes.
2
Edmund Burke (1729-1797) — um parlamentar liberal britânico que apoiou
os colonos americanos em 1776, liderou a impugnação do Governador da
Índia na Câmara dos Comuns [depois recusada na Câmara dos Lordes] e a
seguir condenou a revolução francesa de 1789 — defendeu que as maneiras
são mais importantes do que as leis. As maneiras a que se referia eram
maneiras aristocráticas, no sentido britânico do termo, mais tarde
associadas à chamada austera era Vitoriana.
Essas
maneiras aristocráticas exigiam em primeiro lugar um sentido pessoal de
honra, de auto-controlo e de dever para com os outros — e condenavam
enfaticamente como sinais de vulgaridade não-aristocrática qualquer
sentimento de arrogância ou má-criação para com os outros (a começar por
falar alto em locais públicos e, hoje em dia, estacionar em segunda
fila).
Eram
maneiras ou virtudes aristocráticas, na medida em que recusavam o
abaixamento dos padrões de comportamento, ainda que esse abaixamento
pudesse ser reclamado, ou praticado, pelas ‘massas’ — ou, mais
exactamente, por agitadores revolucionários falando em nome do ‘povo’
(hoje talvez pudéssemos dizer pelas ‘redes sociais’). Mas eram também
inteiramente democráticas porque eram acessíveis a todos,
independentemente da origem social. Ficaram por isso conhecidas como
virtudes de ‘gentlemanship’, virtudes de carácter e não de origem
social.
E
eram democráticas também num adicional sentido crucial. Burke
argumentou que “todas as sociedades precisam de uma força de controlo
sobre os seus apetites e desejos. Quanto menos essa força vier de
dentro, mais terá de vir de fora.” Por outras palavras, as virtudes do
auto-controlo aristocrático eram garantias espontâneas e civis contra o
abuso do poder político estatal e/ou contra as intemperadas paixões
revolucionárias e contra-revolucionárias.
3 Na
verdade, aquelas virtudes aristocráticas foram curiosamente assumidas
pela sociedade civil britânica, inclusivamente de forma muito enfática
pelos movimentos trabalhistas originais, com forte influência cristã —
que acusaram a aristocracia tory (conservadora) de não ser fiel às
virtudes aristocráticos das boas maneiras e do sentido de dever para com
os outros, sobretudo para com os mais desfavorecidos.
Mas
não havia aqui, deve ser enfaticamente sublinhado, qualquer hostilidade
revolucionária contra o que no continente foi chamado de ‘capitalismo’,
nem sequer contra o que no continente se chama “a direita” [“direita” e
“esquerda”, são aliás termos raramente usados no debate político
britânico, talvez apenas para referir movimentos radicais sem expressão
nem respeitabilidade parlamentar]. Também nunca houve qualquer
hostilidade trabalhista contra o sistema parlamentar nem contra a
Monarquia constitucional— sobre os quais trabalhistas, liberais e
conservadores sempre competiram e ainda hoje competem entre si como
melhores defensores [com a episódica excepção Trabalhista do sr. Corbyn,
que não cantava o hino nacional ‘God Save the Queen’, e foi entretanto
democraticamente sucedido pelo moderado Sir Keir Starmer].
4
Inúmeros distintos historiadores identificaram esta aristocrática
democracia das maneiras como um dos elementos cruciais para explicar o
“mistério britânico”: o de ter feito, por vezes antecipado, todas as
revoluções da era moderna, sem recurso à Revolução. A mais recente
revolução britânica, deve ser recordado, teve lugar em 1688 — e
basicamente visou restaurar a democracia parlamentar e, por essa via,
tornar desnecessárias ulteriores revoluções.
Thomas
Macaulay (1800-1859) é sem dúvida uma referência crucial, tal como
George Macaulay Trevelyan (1876-1962). Mas talvez a distinta
historiadora norte-americana Gertrude Himmelfarb (1922-2019) — com quem
tive o privilégio de privar e por quem tive o privilégio de ser educado —
nos tenha fornecido a mais abrangente visão retrospectiva sobre o
mistério britânico não-revolucionário e sobre o contributo decisivo da
aristocrática democracia das maneiras, emergindo espontaneamente da
sociedade civil. Também o austro-britâncio [Sir] Karl Popper (1902-1994)
e o germano-britânico [Lord] Ralf Dahrendorf (1929-2009) [por ambos
também e sobretudo tive o privilégio de ser educado] sublinharam
enfaticamente o papel das maneiras da ‘gentlemanship’ na cultura
política reformista e não-revolucionária dos povos de língua inglesa.
5 Um
crucial detalhe deve aqui ser acrescentado, sobretudo na era tribal que
vivemos: nenhum dos autores que sublinharam a especificidade
não-revolucionária britânica alguma vez a associou a especificidades
étnicas ou raciais. [Himmelfarb, Popper e Dahrendorf, a propósito, não
eram de origem britânica, todos de certa forma imigrantes). Pelo
contrário, todos sublinharam o cosmopolitismo do comércio internacional
britânico e, sobretudo, o enraizamento da sua cultura política liberal
na herança europeia e ocidental fundada em Atenas, Roma e Jerusalém.
Tratava-se,
por outras palavras, de uma especificidade cultural e não étnica. E,
ainda por cima, essa especificidade cultural não era sequer britânica.
Ela tinha as suas raizes na herança cultural europeia e ocidental,
fundada em Atenas, Roma e Jerusalém. O que talvez fosse especificamente
britânico, sobretudo na época moderna das revoluções e contra-revoluções
continentais, era o sentido de preservação reformista de um legado
europeu ancestral.
6
Uma das cruciais sedes dessa herança cultural residia nas
Universidades, sobretudo nas ancestrais Oxford e Cambridge [que sempre
se referem entre si, sem se nomearem, como ‘the other place’). E estas,
por sua vez, tinham horror em reclamar-se como inovadoras: ’Reform?
Reform? Aren’t things bad enough already?’ foi a consagrada expressão do
director do ancestral All Souls College quando lhe disseram que o
reitor de Oxford o convocava para uma reunião sobre reformas
centralmente desenhadas.
Olhares
radicais descrevem hoje aquela resposta como expressão de imobilismo
reaccionário. Mas tratava-se, pelo contrário, de um tranquilo
entendimento da Universidade como lugar de herança tranquila de um
legado ancestral, herdado de Atenas, Roma e Jerusalém. Este legado
poderia e deveria ser gradualmente adaptado a novas circunstâncias, mas
não deveria ser centralmente re-desenhado com base em planos centrais
inspirados no racionalismo dedutivo continental.
Paradoxalmente,
as universidades ocidentais, sobretudo britânicas e norte-americanas,
são hoje palco de tribalismos inovadores rivais. De um lado, assistimos
ao radicalismo fundamentalista, auto-designado “woke”, que condena o
Ocidente e pretende “cancelar” o discurso livre de todos os que não
concordam com a sua ortodoxia. Por outro lado, vemos emergir uma reacção
militante rival que pretende contrapor uma ortodoxia rival, em vez de
simplesmente restaurar a conversação livre entre argumentos rivais.
7
Se devemos contrariar o tribalismo em todas as esferas da vida social, a
prioridade em meu entender deve estar na Universidade. É ela a mais
ancestral instituição ocidental que permitiu preservar e transmitir a
herança de Atenas, Roma e Jerusalém, à revelia de múltiplos disparates
políticos. E conseguiu fazê-lo porque se recusou a ser sede de
rivalidades políticas tribais. A Universidade é a sede por excelência da
aristocrática democracia das maneiras. Esta ideia ancestral foi
memoravelmente celebrada nas palavras de John Henry Cardinal Newman
(1801-1890):
“Uma
Universidade é um lugar onde o inquérito é promovido e as descobertas
verificadas e aperfeiçoadas, e a rudeza tornada inócua, e o erro
exposto, pela conversação de mente com mente e de conhecimento com
conhecimento.”
8
Esta ideia fundamental de Universidade foi recordada por outro
imigrante na América, o distinto filósofo alemão Leo Strauss
(1899-1973). Disse ele que “a educação liberal é o antídoto para a
cultura de massas, […] para a sua tendência para produzir somente
especialistas sem espírito ou visão e voluptuosos sem coração. A
educação liberal é a escada pela qual tentamos ascender da democracia de
massas para a democracia no sentido original — democracia, numa
palavra, entendida como uma aristocracia que se alargou a uma
aristocracia universal”.
Post scriptum 1:
Parabéns enfáticos ao semanário Expresso, que acaba de celebrar 49 anos
— sempre dedicados à liberdade de informação e de opinião. Fundado
corajosamente ainda durante a patética ditadura do chamado Estado Novo
[‘Novo’ como distintivo do despotismo da inovação, teria dito Edmund
Burke, em defesa da ancestral aristocrática democracia liberal], o
Expresso manteve sempre o sentido de liberdade e de pluralismo que
distingue o jornalismo do livre Ocidente. Mil obrigados ao Expresso e ao
seu fundador, Francisco Pinto Balsemão, pelo aristocrático sentido
democrático de dever para com a liberdade. E um voto de genuína
solidariedade contra o vil ataque informático de que o jornal foi alvo
precisamente quando assinalava o 49º aniversário.
Post Scriptum 2:
Parabéns à Duquesa de Cambridge, Catherine Middleton, que fez ontem,
domingo 9 de Janeiro, 40 anos. A sua elegância, sentido de dever e boas
maneiras constituem sinais encorajadores de que a herança exemplar da
Rainha Isabel II — símbolo primeiro da aristocrática democracia das
maneiras — vai perdurar contra a vulgaridade dos tribalismos rivais.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário