No sistema político-representativo de uma sociedade complexa como a brasileira, em que não há possibilidades de iniciativas políticas sem resistências e de ações sem réplicas, nenhum dirigente governamental e nenhum parlamentar tem condições de atender todas as demandas vinculadas aos votos que obtiveram. Ensaio do professor José Eduardo Faria, publicado pelo Estado da Arte:
Inoperância,
insatisfação com o sistema representativo ou simples tédio com relação a
retóricas e narrativas políticas vazias? Da resposta que se der a essa
pergunta sobre uma paulatina perda de vigor e legitimidade das
instituições e valores democráticos no país é que se poderá depreender
porque os últimos anos vêm registrando um preocupante crescimento do
autoritarismo, com sua intolerância, sua defesa hipócrita da lei e da
ordem, sua destruição de reputações e suas mensagens de medo.
A
busca dessa resposta, contudo, não é nova. Também não é fácil, uma vez
que envolve diferentes fatores. Tomando a democracia representativa em
seus aspectos mais simples e conhecidos, ou seja, como um mecanismo de
gestão das diferenças e da instabilidade no espaço público da palavra e
da ação, por um lado, e como um sistema eleições livres dos governantes e
dirigentes pelos governados e dirigidos, que se opõe a todo tipo de
autoritarismo, de absolutismo e de totalitarismo, por outro lado, aponto
resumidamente cinco desses fatores.
O
primeiro fator é o enfraquecimento da ideia de que a democracia
representativa — baseada em partidos capazes de sintetizar num discurso
coerente um programa de ações políticas para enfrentar questões reais — é
um dever moral. No passado, as agremiações partidárias e suas
respectivas militâncias eram encaradas como instrumentos ativos de
vitalidade e interesse geral, ainda que corressem o risco de serem
minadas pela “lei de ferro da oligarquização burocrática”, identificada
pelo sociólogo alemão Robert Michels (1876-1936) ao analisar a tendência
de enrijecimento das organizações burocráticas. Hoje, os 33 partidos
existentes no país são, em sua maioria, simples mecanismos artificiais
de representação, meras legendas de aluguel. Quase todos têm nomes
politicamente corretos propostos por esquemas de marketing, o que
esconde a ausência de seiva ideológica e de um mínimo de consistência
doutrinária. Suas estruturas também são viciadas e corroídas pelos
grupos que comandam as máquinas partidárias.
O
segundo fator diz respeito à progressiva colonização do campo de ação
dos partidos políticos por movimentos sociais de todo porte. Se no
passado esses movimentos eram tratados como forma supletiva da atividade
política, agora, sob a forma de coletivos, têm um peso e uma autoridade
de que as lideranças tradicionais, integradas por políticos
profissionais, carecem. Àqueles movimentos se associam informalidade,
espontaneidade, autenticidade, flexibilidade e vitalidade. Sua estrutura
organizacional é fluída e descentralizada e eles dependem de consenso
justamente por não adotar procedimentos formalizados para a resolução de
seus conflitos internos. Sua autoidentificação não se refere apenas
aos códigos culturais estabelecidos (como esquerda vs. direita), nem aos
códigos socioeconômicos (como proletariado vs. burguesia), mas, também,
a códigos não convencionais (como feminismo, ecologia e emancipação).
Do ponto de vista institucional, porém, que tipo de interlocutores são
os líderes desses movimentos? Como determinar quais são seus membros e
quais não são? De que modo conseguirão deixar de ser “fluxos em
movimento” para se converterem em organizações de fins, com estrutura
interna e cúpulas dirigentes? Por fim, se tiverem êxito nessa empreitada
não estarão perdendo justamente os atributos que os caracterizam, a
começar pela espontaneidade e pela flexibilidade? Não estarão sujeitos
ao risco de reproduzirem o que asfixia a vitalidade dos partidos — a
oligarquização de suas estruturas?
O
terceiro fator é uma certa relativização da importância da ideia de
democracia participativa. Se, na transição do século 20 para o século 21
a ideia de democracia participativa foi vista como uma fórmula
paritária ou como um método para corrigir erros do processo de
representação, reduzindo desigualdades, hoje é possível ver as
dificuldades que esse tipo de experiência enfrenta para ser eficiente.
Se no passado há registros de que funcionou a contento em pequenas
comunidades, hoje ele não consegue vencer os desafios inerentes a
sociedades complexas, com centros de poder e decisão diversificados.
Além da questão da ineficiência, a democracia participativa esbarra em
outros problemas não menos importantes. Ainda que a livre participação
possa ocorrer numa assembleia de bairro, num comitê de empresa ou numa
associação de pais e mestres, como articular ações políticas de âmbito
nacional em um país socialmente desigual e com grande extensão
geográfica? Enfim, quem participa e como? De que modo os debates são
conduzidos? Como deliberar e implementar decisões?
O
quarto fator é decorrente do avanço das tecnologias de comunicação
online e da multimídia, que abriu caminho para o advento das redes
sociais. No início, elas foram aplaudidas como um poderoso instrumento
de multiplicação de experiências de democracia participativa. A ideia
era que, quanto mais os cidadãos têm capacidade de ouvir, menos vozes
marginalizadas haveria. Com o tempo, porém, ficou evidente que a
democratização da informação pelas redes sociais leva ao paradoxo da
desinformação, seja por causa do mau uso da liberdade expressão, seja
pela própria natureza dos novos espaços públicos, seja por
irracionalidades de toda ordem, como o negacionismo científico, o
discurso do ódio e a desconstrução dos adversários no processo
eleitoral. Também ficou claro que a vida política se converteu num
mercado onde os cidadãos comuns pensam como base no que lhes é dito por
quem detém o monopólio da produção de sentido, percepção e expressão do
mundo social.
Por
consequência, a comunicação virtual empobreceu a ação cívica. Aumentou o
poder de elites não representativas no controle da distribuição de
informações. Propiciou uma enorme variedade de produtos simbólicos
estratificados. E ainda projetou figuras torpes e abjetas, como um Trump
ou um Bolsonaro, fazendo com que a mídia tradicional perdesse seu
caráter original de comunicação de massa. Com isso, os cidadãos perderam
a capacidade de dar sentido à realidade política. Na medida em que
passaram a raciocinar sob a forma de estereótipos e as informações
passaram a ser desfiguradas pelas deepfakes ou traduzidas pelos fast
thinkers, os pensadores midiáticos que pontificam para leigos, a
participação no espaço público da palavra e da ação, em vez de
aprofundar a democracia, acabou sendo substituída por pesquisas de
opinião pública.
O
quinto fator decorre das múltiplas tensões causadas nas estruturas dos
Estados nacionais pelos fenômenos da mundialização dos mercados e da
expansão das cadeias globais de valor, minando a democracia como forma
de autodeterminação coletiva. Com seu poder expansivo para trazer os
alcances mais distantes do mundo para seu controle, o capitalismo global
criou espaços jurisdicionais acima e além dos controles democráticos.
Em que medida esse fenômeno não vem comprometendo o poder de decisão
política das instituições representativas dos Estados nacionais? Em
outras palavras, como o declínio da soberania estatal reduz o alcance e o
exercício do poder público, qual é, hoje, a efetiva capacidade dos
órgãos deliberativos, das instituições representativas e dos
procedimentos democráticos dos Estados nacionais para conduzir os
processos econômicos e sociais dentro de suas fronteiras?
O
que fundamenta essas indagações é a transferência para os organismos
multilaterais e supranacionais de parte da titularidade da iniciativa
legislativa dos Estados nacionais. É, também, a internacionalização das
decisões econômicas, em razão do processo de fusões e incorporações que
converteu as antigas multinacionais em empresas mundiais. Quanto mais
esse processo avança, mais a centralidade da política como instância
máxima de representação e condução da sociedade fica comprometida.
Quanto maior é a integração supranacional dos processos econômicos e
administrativos, menor é a congruência dos mecanismos de representação
político-partidária e dos mercados. Com isso, a soberania dos Estados
nacionais é posta em xeque, uma vez que a ação política dentro de suas
fronteiras tende a perder capacidade de articulação, a liberdade de
desenhar novos horizontes e o poder de mando em matéria de política
industrial e monetária e sobre o próprio ordenamento jurídico interno.
Diante
desses fatores, muitos cientistas políticos não escondem seu ceticismo
com a efetividade da representação democrática, apontando as
incongruências entre um pleito, enquanto mecanismo de revelação da
opinião pública majoritária, e os conflitos sociais e econômicos que
governos e casas legislativas têm de enfrentar. No sistema
político-representativo de uma sociedade complexa como a brasileira, em
que não há possibilidades de iniciativas políticas sem resistências e de
ações sem réplicas, nenhum dirigente governamental e nenhum parlamentar
tem condições de atender todas as demandas vinculadas aos votos que
obtiveram.
No
caso de um parlamento, por exemplo, seu papel como um locus de
manifestações, de críticas e de reivindicações conflitantes e muitas
vezes excludentes é aparar arestas, promover composições e viabilizar
compromissos, fortalecendo a capacidade dos atores políticos de conviver
com frustrações, fazer concessões e aprender a respeitar os próprios
limites. Ao agir desse modo, o desafio de uma casa legislativa — e mesmo
de um governo — é enfrentar a apatia, a indiferença e o subsequente
descrédito de determinados setores da sociedade no sistema
representativo, para superá-los com trabalho, negociação e organização. É
tentar evitar o que chamei de decepção, indiferença e tédio ou fastio
com relação à democracia, decorrente de dois sentimentos. O de que a
vida política não estaria à altura do que a população espera dela, por
um lado; e o de que de que votar se resume a escolher entre o mal e o
pior, por outro.
Na
eleição presidencial de 2018, a política tradicional não foi capaz
dessa superação e da neutralização desse sentimento. Com isso, criou
condições para a ascensão ao poder de um populista primário que despreza
o fato de que democracia significa, entre outras coisas, o
reconhecimento moral e jurídico da oposição. Acima de tudo, é um
autocrata que, cercado por militares medíocres, sobrepôs seu grupo
familiar ao sistema partidário, evidenciando seu desprezo por qualquer
sistema de regramento impessoal e baseado em valores coletivamente
compartilhados. O resultado inexorável dessa eleição não foi só a falta
de perspectiva de futuro para o país. Foi, igualmente, o descrédito com
relação à democracia, aumentando a desconfiança e a perda de
credibilidade da sociedade com relação ao sistema representativo.
Agora,
a dúvida é saber se essa tendência será mantida na eleição presidencial
de 2022 ou se haverá alternativas para o afastamento de riscos à
democracia e para a recuperação da confiança no processo político
representativo. Como no panorama atual ainda é muito difícil encontrar
uma resposta plausível para essa indagação, só resta cruzar os dedos. E
repetir o lugar comum de que todo novo pleito presidencial é sempre uma
renovação da esperança.
José
Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria
Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
(USP).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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