Há quem defenda 'ditaduras ecológicas', mas apenas Estados democráticos serão capazes de superar desafios climáticos. João Pereira Coutinho via FSP:
Se as mudanças climáticas são uma ameaça real e existencial para a humanidade, você seria favorável a formas autoritárias de governo para tentar resolver o problema?
Ou, pelo contrário, a democracia e o respeito pelos direitos básicos são mais importantes, mesmo que esses valores não tenham a sensibilidade suficiente para os desafios do clima?
Duas
perguntas, mil polêmicas à vista. A proeza pertence ao cientista
político Ross Mittiga, que teve a ousadia de escrever um ensaio
acadêmico sobre o assunto ("Political Legitimacy, Authoritarianism, and
Climate Change") para a prestigiada "American Political Science Review".
Eis
o ponto de partida: nas questões sobre a legitimidade dos governos, a
nossa cultura demoliberal afastou-se dos "realistas" (como Thomas Hobbes, por exemplo) e se aproximou dos "moralistas".
Os primeiros defendem que um poder absoluto é justificado para garantir a segurança dos indivíduos. Os segundos contrapõem: sem consentimento, sem democracia, sem direitos individuais, não há legitimidade para ninguém.
Em
tempos normais, essas duas posições não precisam ser antagônicas. A
função dos governos é garantir a segurança dos cidadãos e,
adicionalmente, proteger também um conjunto de valores e direitos
democráticos.
A
tensão só ocorre em situações de exceção —e não é preciso imaginar
filmes apocalíticos para perceber isso. Basta lembrar a forma como governos democráticos reagiram à pandemia, limitando severamente certos direitos individuais (como o direito à livre circulação).
Fizeram bem? Fizeram mal?
Essa
não é a discussão que interessa aqui. A pandemia é importante para
ilustrar o ponto de Ross Mittiga: há momentos em que a segurança pode
ser mais importante do que autonomia individual.
Ou,
para usar a terminologia do autor, a "legitimidade fundacional" (que
depende da capacidade do Estado de garantir a segurança de todos) pode
suplantar a "legitimidade contingente" (que, nas democracias liberais do
Ocidente, emana de certos direitos individuais). O primeiro tipo de
legitimidade garante a vida; o segundo, a vida boa.
Logicamente, não é possível que exista vida boa sem existir vida primeiro. Perante ameaças existenciais de larga escala, é preciso defender a vida, ou a possibilidade de existir vida. O resto virá depois.
Em
teoria, aceito o argumento de Mittiga: são incontáveis os exemplos
históricos em que uma sociedade, ameaçada por um poder inimigo, teve de
suspender certos direitos e liberdades para se defender.
O ponto, porém, não está na necessidade circunstancial de transformar uma sociedade civil numa sociedade guerreira.
Está
em saber se essa transformação ocorre dentro ou fora das instituições
democráticas de um país. E, nesse quesito, Thomas Hobbes é um bom autor.
Para Ross Mittiga, Hobbes é o supremo absolutista, disposto a esmagar os direitos individuais em nome da paz e da segurança.
Acontece que o Leviatã não surge por milagre. Ele é consentido pelos indivíduos que desejam escapar ao pesadelo do estado da natureza.
Isso
tem implicações na discussão sobre os estados de exceção: eles só podem
ser aprovados pelas instituições demoliberais competentes, como os
parlamentos, eleitos pelo poder soberano popular. Não basta o
voluntarismo, ou a impaciência, do líder do momento.
Ross
Mittiga sabe disso e apenas espera que os Estados democráticos sejam
capazes de enfrentar os desafios do clima sem ser preciso recorrer a
soluções autoritárias.
Mas
há quem seja mais explícito na sua paixão por "ditaduras ecológicas":
se o povo não acorda para o problema, preferindo continuar com seus
hábitos nocivos para o planeta (comendo carne, usando combustíveis fósseis etc.), não estará na altura de prescindir desse povo ignaro e optar por um tirano bondoso?
Não,
não está: empiricamente, ainda está por provar que as autocracias são
mais eficazes do que as democracias na luta contra as alterações
climáticas.
Aliás,
é até possível presumir o oposto: sociedades democráticas e
pluralistas, nas quais a discussão científica é livre e os avanços
tecnológicos são constantes, são talvez a melhor esperança para tanta
desesperança.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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