Não se sabe se Bolsonaro responderá legalmente pela acusação feita contra os servidores da Anvisa, mas nota de Barra Torres está à altura da agressão. Editorial do Estadão:
No
sábado passado, o diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres,
publicou uma nota corajosa, em tom marcadamente pessoal, como resposta à
grave acusação feita pelo presidente Jair Bolsonaro de que interesses
escusos de servidores da agência sanitária teriam motivado a aprovação
da vacinação de crianças entre 5 e 11 anos contra a covid-19. “Qual o
interesse da Anvisa? Qual o interesse daquelas pessoas taradas por
vacinas?”, insinuou Bolsonaro, em mais uma demonstração de que é indigno
do cargo no qual, infelizmente, foi investido.
O
tempo vai dizer se a acusação leviana – mais uma do presidente, diga-se
– terá alguma consequência legal. A rigor, deveria ter. O que Bolsonaro
fez foi lançar dúvidas infundadas sobre a honestidade de servidores
públicos que, após analisarem os estudos de segurança e eficácia do
imunizante da Pfizer para o público infantil, o mesmo já aplicado em
crianças daquela faixa etária em diversos países, decidiram autorizar a
vacinação infantil como forma de aumentar o nível de proteção dos
brasileiros contra uma doença que já causou a morte de mais de 620 mil
pessoas no País. Entretanto, ao menos por ora, a nota do
contra-almirante Barra Torres já é por si só uma eloquente resposta à
irresponsabilidade e à falta de espírito público que marcam a atuação de
Bolsonaro no curso da pandemia.
Como
diretor-presidente de uma agência estatal que, na insinuação do
presidente da República, agiria motivada por interesses
antirrepublicanos, se não criminosos, Barra Torres, com razão, sentiu-se
pessoalmente atacado por Bolsonaro em sua honra e profissionalismo. O
tom de sua nota, portanto, não haveria de ser outro que não o de uma
resposta pessoal e direta a seu acusador. Com a indignação típica dos
que se veem acusados de um crime que não cometeram – “Vou morrer sem
conhecer riqueza, senhor presidente, mas vou morrer digno” –, e decerto
respaldado pela autonomia que lhe assegura seu mandato à frente de um
órgão de Estado, e não de governo, Barra Torres exortou Bolsonaro a agir
como manda a lei, nada mais. “Se o senhor dispõe de informações que
levantem o menor indício de corrupção sobre este brasileiro”, escreveu o
diretor-presidente da Anvisa, “não perca tempo nem prevarique.
Determine a imediata investigação policial sobre minha pessoa, aliás,
sobre qualquer um que hoje trabalhe na Anvisa, que com orgulho eu tenho o
privilégio de integrar.”
No
início de seu mandato, havia dúvidas se Barra Torres, indicado pelo
presidente da República para o cargo, não seria mais um esbirro de
Bolsonaro na defesa de seus desatinos, e justamente no momento mais
dramático da história da agência. Mas o tempo se encarregou de dissipar
essas dúvidas. Como destacou em sua nota, o também médico Barra Torres
tem marcado sua gestão à frente da Anvisa por colocar a ciência acima da
política, “a razão à frente do sentimento”, o interesse público acima
dos interesses eleitorais de quem o indicou.
Afirmando
ser “cumpridor dos mandamentos” cristãos e jamais ter levantado “falso
testemunho”, Barra Torres pediu que Bolsonaro “exerça a grandeza que o
seu cargo demanda e, pelo Deus que o senhor tanto cita, se retrate”.
É
improvável que o presidente mande instaurar investigação ou se retrate.
Primeiro, porque não há indício de corrupção envolvendo a aprovação
técnica das vacinas pela Anvisa a ensejar a abertura de um inquérito
policial. Segundo, porque este é exatamente o modus operandi do
presidente da República: a Bolsonaro não interessam os fatos, interessa
apenas lançar mentiras e teorias conspiratórias no ar para que elas
circulem no esgoto das redes sociais e dos aplicativos de mensagem, onde
ganham vida própria e excitam a base de apoio radical ao presidente.
Bolsonaro
desconhece limites legais, institucionais e morais para fazer valer
seus interesses particulares. A acusação infundada contra os servidores
da Anvisa é uma pequena amostra do que ele será capaz de fazer neste ano
eleitoral, quando o que está em jogo é a continuidade de seu projeto
pessoal de poder.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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