Âncoras como Sean Hannity e outros colegas eram íntimos do ex-presidente - e só deram bons conselhos quando aconteceu a invasão do Capitólio. Vilma Gryzinski:
Ter
acesso ao presidente é um privilégio para qualquer jornalista. Mas
existe um limite entre “acesso” e “colaboração”? Qual o papel adequado,
para um jornalista, no relacionamento com uma fonte de informações tão
importante – mas, mesmo assim, fonte?
Um
caso interessante está acontecendo atualmente nos Estados Unidos, onde
mensagens e outros contatos de âncoras conhecidos da Fox News vão sendo
revelados nas investigações da comissão de inquérito dos acontecimentos
de 6 de janeiro do ano passado.
O
jogo é conhecido: democratas e aliados, inclusive ou principalmente na
imprensa, querem mostrar que a multidão de trumpistas que invadiu o
Capitólio serviria para desfechar um golpe de estado – um golpe sem
exército, marinha nem aeronáutica, um dos descalabros dessa
interpretação.
Que
a multidão, esquentada por um discurso de Donald Trump, agiu errado e
os que cometeram abusos ou delitos devem ser punidos pela lei, não há
dúvida nenhuma.
Mas
o fato é que a massa sem líderes nem propósitos definidos, fora
protestar contra o que consideravam uma eleição fraudada para dar a Casa
Branca a Joe Biden, acabou prejudicando principalmente ao próprio
Trump.
Ele
saiu desmoralizado do episódio – talvez irreversivelmente, se quiser
concorrer em 2024, em especial entre eleitores frustrados com Biden, mas
assustados com a anarquia incitada pelo ex-presidente.
O
curioso é que os âncoras com quem dialogava frequentemente
identificaram o problema de imediato e mandaram mensagens frenéticas
para chamá-lo à razão.
“Mark,
o presidente precisa dizer para as pessoas no Capitólio irem para
casa”, escreveu Laura Ingraham, uma das mais ardorosas trumpistas da
Fox, para o chefe da Casa Civil, Mark Meadows. “Isso está fazendo mal a
todos nós. Ele vai destruir o seu legado”.
Sean Hannity, talvez o mais próximo de Trump, também tentou fazer o presidente ver a realidade dos fatos através de Meadows.
“Ele
não pode fazer um pronunciamento? Pedir para as pessoas deixarem o
Capitólio?”, apelou Hannity, o âncora mais bem pago da emissora, tão
identificado com Trump que chegou a ir num comício dele em 2018, atitude
criticada como imprópria pela própria Fox.
Outro
apelo do mesmo tipo foi feito por Brian Kilmeade, do programa matinal
Fox And Friends, ao qual Trump telefonava regularmente quando estava na
Casa Branca: “Por favor, leve-o à televisão. Está destruindo tudo o que
vocês conseguiram”.
Como
se vê, os âncoras avaliaram corretamente o tamanho da encrenca e
tentaram alertar Trump para corrigir o erro. Mesmo que tenham programas
completamente baseados em opiniões, estariam transpondo os limites que
devem separar os que fazem jornalismo e os que são objeto dele?
Stephanie
Grisham, que foi brevemente secretária de Imprensa e saiu depois do 6
de janeiro, falando mal de Trump e de Melania, com quem havia trabalhado
antes, disse ao Washington Post que o ex-presidente citava literalmente
Sean Hannity e outra âncora fiel, Jeanine Pirro, em reuniões do
ministério. Também ligava para Hannity e Lou Dobbs (demitido em
fevereiro da Fox Business) para que participassem por telefone dessas
sessões.
Nem
sempre as relações eram tranquilas. Hannity calculou certo o tamanho do
problema que Trump estava criando para si mesmo com o comício que
terminaria com a invasão do prédio do Congresso.
“NÃO
acho que o 6 de janeiro vai acontecer do modo como estão dizendo a
ele”, escreveu o âncora, uma semana antes dos acontecimentos fatídicos,
ao chefe da Casa Civil e a um deputado íntimo de Trump, Jim Jordan.
Depois
do estrago, Hannity tentou aconselhar Trump sobre o que fazer no
período atribulado que antecedeu a posse de Joe Biden. “Ele não pode
falar mais em eleição. Nunca mais. Não tive uma conversa boa com ele
hoje”.
Uma
relação tão íntima entre um jornalista e um presidente levanta várias
dúvidas sobre o comportamento ético do profissional. Na prática, as
fronteiras se diluem. Da mesma forma que políticos “amigos” são fontes
importantes, jornalistas abastecem-nos com informações, fofocas e,
inevitavelmente, conselhos. “Governador, por que o senhor não…?”, é uma
frase, em suas diversas versões, infinitamente repetida.
Quando
a proximidade é excessiva, causa problemas. O caso mais recente disso
foi o de Chris Cuomo, o apresentador mais visto da CNN. Quando a fase
inicial da pandemia mostrou seu irmão, Andrew Cuomo, então governador de
Nova York, como um herói do combate à doença, ele o entrevistava
praticamente todos os dias.
A
realidade foi mostrando que o governador não era tão heroico assim. Sua
imagem desmoronou de vez quando surgiram sérias acusações de assédio
sexual. As conversas dos irmãos Cuomo – não poderiam ser qualificadas
tecnicamente de entrevistas – foram parecendo suspeitas e a coisa
desandou quando vieram à tona e-mails de Chris Cuomo tramando com uma
assessora do irmão como desmoralizar as denunciantes.
Chris
Cuomo pode processar a emissora para receber 18 milhões de dólares
referentes aos quatro anos que faltavam para seu contrato terminar. A
quantia dá uma ideia de como as estrelas dos programas jornalísticos de
opinião são bem recompensadas.
O
contrato que Chris Cuomo perdeu empalidece diante dos 25 milhões de
dólares anuais de Sean Hannity. Laura Ingraham ganha 15 milhões. Podem
dar conselhos de graça a presidentes – embora “de graça ”seja apenas uma
forma de dizer que não recebem dinheiro para isso.
Em compensação, ter um presidente ligando para conversar ao vivo, como fazia Trump, tem um valor inestimável.
Com
seu estilo agressivo e matador, Hannity não pretende ficar quietinho
enquanto a comissão de inquérito divulga suas mensagens. A última dele:
“Nós sabemos agora, e foi confirmado e corroborado por numerosas fontes
aqui nesse programa, que Donald Trump autorizou a convocação de até 20
mil soldados da Guarda Nacional para proteger o Capitólio. A autorização
foi dada dois dias antes de 6 de Janeiro”.
O
apresentador propõe, provocativamente, que a presidente da Câmara,
Nancy Pelosi, e o prefeito do Distrito de Columbia, onde fica
Washington, Muriel Bowser, sejam convocados pela comissão parlamentar a
dar explicações.
O
policiamento falho realmente facilitou a invasão do Congresso, mas o
que Hannity e outros da mesma linha querem insinuar é que houve uma
manobra deliberada para produzir os eventos daquele dia e prejudicar
Trump.
Como
se Trump não soubesse se prejudicar sozinho – inclusive ao demorar
tanto para seguir os conselhos de seus influenciadores da Fox.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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