As agências de checagem se fortaleceram como uma espécie de “polícia de conteúdo” na internet, com poder de censurar publicações que desafiem as posições oficiais de órgãos como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e demais agências estatais e supra-estatais. Daniel Reynaldo e David Ágape para a Gazeta do Povo:
“Você
pode continuar odiando os checadores", esta foi a frase de Cristina
Tardáguila, jornalista fundadora da primeira agência de fact-checking do
Brasil, a Agência Lupa, em resposta a questionamentos diante de uma
polêmica ocorrida em novembro: o perfil no Twitter da Lupa publicou um
dicionário com expressões alegadamente racistas que deveriam ser
banidas. Os leitores foram unânimes em desaprovação.
O
problema é que a Lupa cometeu erros em relação a aspectos etimológicos e
semânticos. Mesmo que diversos colunistas e especialistas tivessem
explicado que não há evidências de que as expressões possuam qualquer
conotação racista histórica ou atual, a agência demorou três dias para
deletar o texto original e publicar nova versão informando a existência
de pontos de vista divergentes, mas ainda prescrevendo o abandono das
expressões. Apenas quando o escritor Leandro Narloch publicou um texto
crítico esmiuçando os erros cometidos, quase uma semana depois, a
agência publicou um editorial admitindo expressamente o erro.
Talvez
este tenha sido o primeiro erro admitido publicamente por uma agência
de checagem e a ter grande visibilidade. Erros semelhantes aconteceram
ao longo da pandemia de Covid-19 e muitas vezes não foram reparados.
Afinal, quem checa os checadores?
Polícia da verdade ou do pensamento?
Desde
o aparecimento da Covid-19, na cidade chinesa de Wuhan, no final de
2019, os discursos em torno da doença têm sido conflitantes. O debate
público tornou-se palco de uma guerra de narrativas. A desinformação foi
apresentada como grande vilã: milhões de pessoas poderiam morrer por
causa de mentiras.
Assim,
as agências de checagem se fortaleceram como uma espécie de “polícia de
conteúdo” na internet, com poder de censurar publicações que desafiem
as posições oficiais de órgãos como a Organização Mundial da Saúde (OMS)
e demais agências estatais e supra-estatais.
O
movimento exacerbado pela pandemia não nasceu com ela: agências de
checagem vêm controlando o debate público nas redes sociais nos últimos
anos. Surgidas em meados de 2004, nos Estados Unidos, ditam o que pode e
o que não deve ser compartilhado. Até agora este controle é exercido a
partir de uma cooperação voluntária entre as empresas que controlam as
redes sociais e as agências de checagem. O PL 2630/20, conhecido como
projeto de lei das fake news, previa em seu texto original, o “uso de
verificações provenientes dos verificadores de fatos independentes”, mas
o texto atualmente em tramitação já não prevê o uso das agências de
checagem como instrumento legal de controle da informação.
Inicialmente
estas empresas tinham o objetivo de analisar discursos eleitorais nos
Estados Unidos. Logo se espalharam por todo o mundo e ampliaram o foco
para publicações em redes sociais e discursos em geral. Com o objetivo
de profissionalizar o processo, foi criada a International Fact-checking
Network (IFCN), sob responsabilidade do Poynter Institute, que traçou
uma série de critérios para a criação e certificação das agências.
No
Brasil, existem três agências certificadas pela Poynter: Agência Lupa,
Aos Fatos e Estadão Verifica. Existem também outros projetos não
certificados, mas que atuam no mercado e são usados como referência:
E-farsas; Fato ou Fake, do grupo Globo; e o Comprova, projeto que reúne
jornalistas de diferentes veículos de comunicação e é financiado pelo
Google News Initiative e pelo Facebook Journalism Project.
Neste
cenário, surgem hoje diversas questões: é possível atestar a falsidade
de uma alegação com base na classificação feita por uma agência de
checagem? A existência de imprecisões em uma mensagem divulgada nas
redes deveria ser argumento para proibir sua veiculação e punir seus
veiculadores?
Segundo
Fernando Schüler, cientista político, há um enviesamento político na
atuação de algumas dessas agências. Segundo ele, é possível identificar
pela maneira como são feitas as análises, pelas escolhas curatoriais e
até mesmo pelo perfil das fontes para as entrevistas veiculadas. “Isso é
ruim, pois as agências de checagem poderiam cumprir um papel essencial
no debate democrático. Mas, na medida em que optam por uma certa visão
política, tendem a perder seu principal ativo: a confiança das pessoas,
em uma sociedade plural”, diz.
Debates científicos em aberto tratados como concluídos
Em
junho de 2020, a Lupa declarou em seu Twitter que era falsa a afirmação
de que o novo coronavírus foi criado em laboratório. Em outra
publicação, a agência foi ainda mais categórica e chamou de “teorias da
conspiração” estas especulações.
Em
fevereiro de 2021, a jornalista Paula Schmitt ironizou no Twitter a
comitiva oficial enviada pela OMS para investigar o laboratório de Wuhan
e tentar descobrir qual a origem do vírus. Uma matéria do Daily Mail
anunciava que a comitiva não tinha ainda descoberto “como o vírus havia
pulado de animais para humanos”, mas que “já descartava algumas teorias
laboratoriais”.
Entre
os pontos apontados pela jornalista estava a presença do zoólogo
britânico Peter Daszak na equipe enviada pela agência de saúde da ONU:
“Só o fato de o Daszak estar nessa equipe "investigativa" já deveria ser
razão para desmerecer os trabalhos”, defendeu Paula.
Daszak
lidera o grupo de pesquisas EcoHealth Alliance, cuja missão anunciada é
a de prevenir novas doenças infecciosas. Acontece que o EcoHealth
Alliance tinha, desde 2004, um programa conjunto de pesquisas em
parceria com o mesmo instituto de pesquisas chinês de onde há suspeitas
que o vírus possa ter escapado: o Instituto de Virologia de Wuhan.
Mas
o tuíte foi criticado por Daniel Bramatti, diretor do “Estadão
Verifica”, que fez a seguinte reclamação: “Eu não acho legal acusar
alguém em público, ou lançar suspeitas, com base em... suspeitas”. Para
Daniel, a tese de vazamento laboratorial também não passaria de teoria
da conspiração.
Com
base em checagens destas agências, Facebook e Instagram proibiram
menção à possibilidade de origem laboratorial do vírus, e postagens eram
excluídas e os usuários que insistissem poderiam ser banidos. Embora
houvesse uma controvérsia científica viva, as agências de checagem
trataram como uma discussão definitivamente encerrada. Foi necessária a
publicação de um artigo na prestigiosa revista científica Science para
que o Facebook voltasse atrás em sua decisão de censurar o debate.
A
decisão do Facebook, baseada em checagens equivocadas, de proibir que a
possibilidade de origem laboratorial do vírus só foi revista em maio de
2021, mas já em novembro de 2020 o geneticista Eli Vieira escrevia para
a Gazeta do Povo alertando que a origem laboratorial do covid-19 devia
ser considerada uma hipótese plausível.
Erros em sequência
A
controvérsia envolvendo a origem do vírus não foi um exemplo único. Em
27 de março de 2020, a Lupa classificou como falsa a alegação de que era
recomendável que todos usassem máscaras nas ruas. Com base na opinião
do médico Drauzio Varella, a agência também informava que as máscaras
não serviam como prevenção. No dia 06 do mesmo mês, a Aos Fatos já havia
afirmado que “Diferentemente do que muitos acreditam, o uso de máscaras
não tem grande eficácia na prevenção da infecção.”
Entretanto,
em setembro do mesmo ano, a Lupa publicou a checagem intitulada
“#verificamos: é falso que uso de máscaras caseiras não protege contra a
Covid-19” e classificou como falsa uma afirmação oposta. A agência
afirma que tanto as máscaras cirúrgicas como as feitas de tecido são
úteis na prevenção. Uma das justificativas apresentadas pela agência
para a conclusão defendida nesta checagem foi um estudo publicado na
revista científica inglesa The Lancet, baseado na revisão de vários
estudos anteriores.
A
maioria dos estudos revisados pelos autores deste artigo já estavam
disponíveis em 27 de março, isto é: a maior parte das evidências
consideradas pelos autores do artigo da Lancet já estavam disponíveis na
data em que a Lupa afirmou que as máscaras não eram recomendadas para
todos e que não deveriam ser utilizadas como prevenção.
Segundo
a metodologia divulgada pela própria Lupa, “falso” é uma etiqueta de
checagem que deve ser exclusivamente aplicada a alegações
“comprovadamente incorretas”. Para questões cuja verdade não pode ser
definitivamente estabelecida, a Lupa informa que são utilizadas
etiquetas como “ainda é cedo para dizer”, “insustentável” ou “de olho”.
Todavia,
o próprio artigo científico apresentado como referência pela agência
indica que o estudo tem limitações. Os pesquisadores destacam como
principal limitação o fato de que nenhum dos estudos revisados era
randomizado. Eles também indicam baixa confiança nos efeitos positivos
estimados para o uso de máscaras, esclarecendo textualmente que existe
um alto risco de os efeitos reais serem muito diferentes dos estimados a
partir da investigação conduzida por eles. E apontam, adicionalmente,
que mais pesquisas de alta qualidade, incluindo ensaios randomizados
sobre a distância física ideal e a eficácia de diferentes tipos de
máscaras na população em geral e para a proteção dos profissionais de
saúde, são necessárias com urgência.
Desta
forma, nem a alegação de que máscaras são recomendáveis para todos
(tratada como falsa pela Lupa em março de 2020) nem a alegação de que
máscaras caseiras não protegem (tratada como falsa em setembro) poderiam
receber esta classificação, segundo os critérios da própria Lupa. Sendo
esta uma questão ainda em aberto e carente de estudos rigorosos, não se
pode afirmar categoricamente que uma ou outra alegação seja
“comprovadamente incorreta”.
As
agências Aos Fatos e Estadão Verifica realizaram checagens sobre o
Estudo de Cloroquina de Manaus, onde 22 pessoas morreram, e afirmaram
que nenhuma foi por superdosagem. Mas estas checagens utilizaram apenas a
versão oficial da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, como uma
espécie de argumento de autoridade, e não se atentaram ao fato de que
ainda há uma investigação em curso sobre o caso. Não houve análise da
toxicidade da dosagem de cloroquina aplicada no estudo, e nem foi levado
em conta o depoimento do médico infectologista Francisco Cardoso, que
explicou na CPI da Pandemia o porquê de ter havido superdosagem. Sobre a
Conep, a Gazeta do Povo já revelou em reportagem o conflito de
interesses entre seu coordenador e o pesquisador responsável pelo estudo
de Manaus.
Quem não checa os checadores
Para
que as agências sigam certificadas, devem seguir à risca um código de
princípios que assegura a qualidade do trabalho realizado, como o
comprometimento com a não-partidarização; com a transparência de fontes,
de financiamento e de metodologia; e com correções abertas e honestas.
Este último critério levou o bancário de 37 anos, Rômulo Araújo, a
enviar uma série de emails para a área de correção Agência Lupa
apontando diversos erros que encontrou em suas checagens.
Ele
conta que fez diversas tentativas de contato com a agência Lupa para
informar sobre erros e imprecisões no texto: “Em anúncio, grupo de
médicos usa informações falsas para defender tratamento ineficaz contra
Covid-19”. Entre os erros apontados por Rômulo, há discrepâncias
factuais evidentes.
Um
dos artigos mencionados como fonte pela Lupa foi um estudo conduzido
por pesquisadores brasileiros e publicado no New England Journal of
Medicine. Este estudo foi um ensaio aberto, a Lupa afirmou que se
tratava de um estudo duplo-cego. Em outro erro factual, a Lupa afirma
que os voluntários receberam a medicação exatamente quatro dias após
exposição ao vírus. Entretanto, o texto do artigo informa que o limite
foi de até 14 dias após o início dos sintomas e que a mediana foi de
sete dias.
Rômulo
enviou mensagens para o e-mail da agência em abril de 2021, alertando
sobre a presença destes erros factuais claros e de uma série de outras
imprecisões e incoerências. Também fez sugestões relacionadas à linha
editorial como omissão de fatos e falta de clareza. As correções e
críticas foram ignoradas pela agência. Após aguardar cerca de dois meses
desde o primeiro contato, Rômulo resolveu acionar a IFCN, do Poynter
Institute, mas também nunca foi respondido. Então ele decidiu por conta
própria buscar a reportagem da Gazeta do Povo para contar sua história.
“Ao
ver a fragilidade do processo, a má qualidade do serviço de checagem e a
recusa de correção, provavelmente motivados por questões políticas,
achei que era vital trazer essa informação à tona”, diz Rômulo sobre
quais eram as suas motivações ao buscar a imprensa.
Sem resposta
A
reportagem da Gazeta do Povo também não obteve respostas. Ao ser
indagado sobre os critérios de seleção do conteúdo a ser checado pelo
Estadão Verifica, sobre suas fontes de financiamento e sobre o processo
de International Fact Checking Network (IFCN), o próprio Daniel Bramatti
se limitou a responder: "Oi, Rodrigo! Não vamos nos manifestar”,
errando o nome do repórter que entrou em contato.
As agências Lupa e Aos Fatos não responderam nossos contatos.
Baybars
Örsek, diretor da IFCN, disse à Gazeta do Povo que o processo de
avaliação e revisão ocorre todos os anos para cada organização
signatária certificada e que já ocorreu de organizações serem expulsas
da rede devido a violações do seu código de princípios. Baybars também
disse que as reclamações enviadas à IFCN são apreciadas por avaliadores
todos os anos durante as renovações e que não são respondidas
individualmente as reclamações, a menos que mostrem um padrão de
violação do Código de Princípios do IFCN.
Solicitamos
mais informações a Baybars sobre as organizações expulsas de sua rede e
sobre a ausência de resposta ao questionamento de Rômulo, mas não
obtivemos mais retorno.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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